APOE ε4: Além do Alzheimer
As doenças neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer (DA), Parkinson (DP), esclerose lateral amiotrófica (ELA) e demência frontotemporal (DFT), afetam mais de 57 milhões de pessoas em todo o mundo, com previsões de que esse número dobre a cada 20 anos. Embora já existam tratamentos direcionados que podem prevenir, retardar, interromper ou até reverter a progressão dessas doenças, diversos obstáculos dificultam o início do tratamento. Um desafio significativo é o longo período pré-clínico ou prodrômico das doenças neurodegenerativas, onde o diagnóstico é complicado devido a manifestações sutis que não são detectáveis pelas ferramentas clínicas atuais.
A heterogeneidade na concordância entre a patologia molecular e a síndrome clínica, além da frequência de múltiplas patologias, contribuem para diagnósticos errôneos em ambientes clínicos. A variabilidade na taxa e no padrão de progressão dos sintomas dentro dessas condições também impede que se indique com precisão o prognóstico do curso da doença. Esses desafios diagnósticos e prognósticos dificultam o tratamento eficaz de pacientes em estágios iniciais.
Abordagens Multiômicas
As abordagens multiômicas, que integram genômica, transcriptômica, proteômica e metabolômica, estão contribuindo significativamente para o diagnóstico e tratamento de doenças neurodegenerativas. Um esforço global, conhecido como Consórcio Global de Proteômica Neurodegenerativa (GNPC), reuniu uma coorte mundial de mais de 35 mil bioamostras analisadas. Em um estudo publicado em abril de 2025, foram apresentados dados que buscam entender a relação entre o envelhecimento e as doenças neurodegenerativas mencionadas anteriormente.
Um dos resultados desse grande esforço internacional foi a análise do genótipo APOE em todo o proteoma, que revelou uma assinatura robusta e independente da doença associada ao alelo ε4 da apolipoproteína E (APOE ε4). Este alelo é amplamente reconhecido como o maior fator de risco genético para a doença de Alzheimer de início tardio. No entanto, evidências crescentes sugerem que o transporte mediado pelo APOE ε4 também pode estar relacionado a outras doenças neurodegenerativas relacionadas à idade.
Relações com Outras Doenças
Estudos indicam que o APOE ε4 está associado a um aumento do risco e a uma idade de início mais precoce para a demência frontotemporal, a doença de Parkinson e a esclerose lateral amiotrófica. Além disso, a presença do alelo ε4 está ligada a uma taxa mais rápida de declínio cognitivo na DP, elevando o risco de demência nesta condição. Análises proteômicas envolvendo líquido cefalorraquidiano (LCR) e plasma de indivíduos com DA, DP, DFT, ELA e controles não afetados, bem como análises do córtex pré-frontal, mostraram alterações significativas.
Essas análises revelaram que todos os portadores de APOE ε4, independentemente da doença neurodegenerativa, possuem uma assinatura proteômica única que se estende pelo plasma, LCR e cérebro. Essa assinatura está associada à desregulação imunológica pró-inflamatória e ao aumento de células imunes circulantes, como monócitos e células T, entre outras. Essa resposta molecular é observada em cérebros de portadores de APOE ε4, não estando vinculada a nenhuma patologia cerebral específica, como β-amiloide ou tau.
Implicações da Pleiotropia Antagônica
Os autores do estudo sugerem que o genótipo APOE ε4 pode ser considerado um exemplo moderno de pleiotropia antagônica. Em adultos mais jovens, a presença do APOE ε4 está associada a um aumento na sobrevida e na fertilidade em ambientes com altos níveis de doenças infecciosas. Indivíduos heterozigotos para APOE ε4 mostram uma resposta imune mais robusta, com liberação aumentada de citocinas e maior proteção contra infecções. Contudo, a inflamação crônica associada a essa resposta imune pode se tornar prejudicial com o avanço da idade.
Esses achados apoiam a reavaliação do APOE ε4 como um alelo de suscetibilidade que contribui para mecanismos patogênicos comuns entre doenças neurodegenerativas. Entretanto, ainda não está claro por que o APOE ε4 está mais fortemente associado à doença de Alzheimer em comparação com outras condições, apesar de seu impacto biológico geral.
Desenvolvimento e Vulnerabilidade à Neurodegeneração
Embora os mecanismos exatos que ligam estados inflamatórios periféricos e centrais não sejam totalmente compreendidos, interações entre células imunes pró-inflamatórias e a barreira hematoencefálica (BHE) podem desempenhar um papel crucial. Portadores de APOE ε4 cognitivamente saudáveis mostram um fenótipo pró-inflamatório sistêmico e marcadores de disfunção da BHE, o que sugere que a infiltração de proteínas do sangue e células imunes pode contribuir para a neuroinflamação e a neurodegeneração.
Além disso, é importante considerar como interações entre fatores genéticos e exposições ambientais, como hipercolesterolemia e doenças cardíacas, influenciam quais doenças neurodegenerativas se desenvolvem nos portadores de APOE ε4. Insultos ambientais podem agir sinergicamente com um estado pró-inflamatório geneticamente predisposto, intensificando a neurodegeneração.
Conclusão
Portanto, é fundamental mudar a compreensão do gene APOE e de outras variantes genéticas de risco, reconhecendo seu potencial como modificadores pleiotrópicos da vulnerabilidade neurodegenerativa. O alelo APOE ε4, por sua vez, deve ser visto como um modulador imunológico pleiotrópico. Ferramentas de diagnóstico, como o teste genético BioAlzheimer, são essenciais para identificar a presença do alelo APOE ε4, permitindo a adoção de estratégias personalizadas de prevenção e acompanhamento antes do surgimento dos sintomas, com o objetivo de retardar ou impedir a progressão da doença.
Referências
IMAM, Farhad et al. The Global Neurodegeneration Proteomics Consortium: biomarker and drug target discovery for common neurodegenerative diseases and aging. Nature Medicine, 2025.
SHVETCOV, Artur et al. APOE ε4 carriers share immune-related proteomic changes across neurodegenerative diseases. Nature Medicine, 2025.
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