Doutor Elias, o privatista dos transplantes

ELIO GASPARI
Aconteceu o impensável. Dois rins tirados de um cadáver pela rede pública de captação de órgãos foram transplantados em dois doentes dos serviços de medicina privada do Hospital Sírio e Libanês, de São Paulo. Deve-se à repórter Sandra Boccia uma meticulosa descrição do labirinto percorrido pelos rins. Ela mapeou um caso de privatização fulminante, daqueles de dar inveja ao BNDES. Aceitando-se lisamente todas as versões, resulta que os rins foram tirados do cadáver no dia 25 de dezembro. A Central de Transplantes da Secretaria de Saúde os ofereceu a 33 hospitais públicos e privados. Ninguém tinha equipe de plantão. Nem o Hospital das Clínicas, o maior do Brasil. Vale lembrar que só em São Paulo há 2.600 pessoas na fila de espera de um transplante de rim.

Na falta de interessados, os rins foram para o Hospital Sírio e Libanês e lá foram colocados em dois doentes de sua clínica particular de transplantes.  Se isso não tivesse acontecido, teriam-se perdido. Tendo acontecido, os pacientes receberam o que precisavam e os médicos faturaram algo como R$ 30 mil por transplante.

Tudo nos conformes. Salvo num pequeno detalhe: o chefe da equipe de transplantes privados do Hospital Sírio e Libanês, doutor Elias David Neto, é também integrante da equipe de transplantes públicos do Hospital das Clínicas. O doutor tem dois empregos. Num os transplantes valem até R$ 30 mil. No outro, quem paga é o SUS e a fatura
rende apenas R$ 3 mil. Ele mesmo explicou por que os rins foram parar no Sírio e Libanês, onde a equipe tinha intere$$e em dar plantão, e não no HC, onde não havia plantonista:

– Não havia ninguém no HC porque ninguém estava ganhando um tostão para estar lá.

O doutor Elias captou o argumento central da questão: quem trabalha de graça é relógio. E, como é sabido por qualquer amotinado de penitenciária, o serviço público é ruim de plantão em feriadão.

O doutor Elias diz que “as fraudes só são possíveis na cabeça de gente corrupta”. Tem toda razão, mas o que aconteceu com aquele par de rins tem mais a ver com os propósitos da saúde pública, da medicina privada e com o destino dos doentes-SUS e dontes-auto-sustentados. O doutor deixou mal seus colegas Adib Jatene e Agenor Spallini Ferraz, coordenador da Central de Transplantes do Estado de São Paulo. Ambos asseguraram que somente os hospitais públicos que atendem pacientes do SUS ficam hoje com o segundo rim. Errado. O Sírio e Libanês, que não atende pacientes do SUS, ficou com o primeiro e o segundo rins. Poderia ter direito a um, mas levou os dois. Se não levasse, o rim se perderia, mas nesse aspecto fica difícil entender por que a equipe que o doutor Elias chefia no Sírio fica com dois rins para os trabalhos de dois transplantes num dia em que o quadro de médicos do HC, ao qual pertence o mesmo doutor Elias, rebarba rins porque não dá plantão no Natal.

No caso do doutor Elias a inépcia do Estado e a eficácia do mercado coabitam na mesma pessoa. Maravilhosa síntese das virtudes privadas e das deficiências públicas. No dia em que o BNDES chegar a essa perfeição o Brasil estará em outro mundo, talvez no Primeiro, talvez no outro.

A escumalha paga impostos supondo que haja transplantadores de plantão no HC. Essa mesma turma paga salário ao doutor Elias. Pode ser pouco, mas vem de gente que tem menos que ele. E se é tão pouco assim, por que o doutor não manda o HC às favas?

No mundo do doutor Elias as coisas funcionam assim: um trabalhador é atropelado a meio caminho entre o Sírio e o HC. É socorrido, mas não pode ser levado para o Sírio. Primeiro porque esse hospital não atende esse tipo de caso. Segundo porque não atende a malta do SUS. Vai para o HC e chega com morte cerebral. Tiram-lhe os rins, mas como no HC não há plantão para transplantar os órgãos em doentes do SUS, o Sírio, que não recebe trabalhador atropelado como peça inteira, aceita o retalho. Lá, a equipe do doutor Elias faz os transplantes em pacientes que têm R$ 30 mil para pagar.

Se tudo isso fosse pouco, há outro absurdo. Toda vez que uma equipe de médicos do sistema público de saúde capta órgãos de um cadáver, a patuléia do SUS paga R$ 2 mil ao hospital que fez o serviço. Ou seja: a choldra pagou a retirada dos rins. Não havia plantonista nos hospitais públicos e os rins foram para clientes privados da equipe do
Sírio e Libanês. Que tal devolver à ralé do SUS o dinheiro que ela pagou por dois rins que acabaram privatizados?

ELIO GASPARI é colunista do O GLOBO.
Rolar para cima