Uso de drogas em Insuficiência Renal 


E. Barsanulfo Pereira; Doutor em Nefrologia pela Escola Paulista de Medicina e   Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul: Disciplina de Nefrologia  e  Disciplina de Farmacologia Clínica.


A prescrição de drogas em  insuficiência renal, para ser mais racional e segura, deve objetivar a individualização terapêutica, e portanto, basear-se em parâmetros farmacocinéticos.

PARÂMETROS  FARMACOCINÉTICOS

Biodisponibilidade:Percentagem de droga, do total absorvido, que chega ao ventrículo esquerdo como princípio ativo. (F=%).

Efeito de primeira passagem: Perda parcial de droga, por metabolização hepática ou pulmonar, após a absorção.

Volume aparente de distribuição: Volume teórico ocupado pela droga, caso se dissolvesse homogeneamente pelo corpo, e a sua concentração, em todas as partes, fosse igual à do plasma. (Vd=l/kg).
Vd=dose corporal todal/concentração plasmática.

Eliminação de drogas: É o desaparecimento de suas formas ativas do volume em que se distribui. A velocidade de eliminação pode ser descrita através do seu Clearance corporal (Cl), da Constante fracional de eliminação (K) e da sua Meia-vida biológica (t½).

Clearance corporal: Volume virtual de líquido do volume de distribuição que se livra de uma droga a cada minuto. Representado usualmente pelo Clearance plasmático (Clp=ml/min), sendo este, a soma do Clearance não-renal (Clnr) e do Clearance renal (Clr). Clp=Clnr+Clr.

Clearance não-renal: Faz-se principalmente pela metabolização hepática das drogas. O Clearance hepático (Clh) depende do fluxo sangüíneo hepático (Qh) e da extração hepática enzimática das drogas (E=(concentração arterial-concentração venosa)/concentração arterial). Clh=Qh x E. Para efeito de ajuste de dosagem em insuficiência hepática as drogas são divididas em dois grupos: as limitadas pelo fluxo e as limitadas pelas enzimas.

Clearance renal: Derivado do conceito de clearance renal de uma substância, como o da creatinina, depende da filtração glomerular e da manipulação tubular das drogas. Pode ser relacionado com o Clearance da creatinina: Clr=k.Clcr (k=constante de proporcionalidade).

Constante fracional de eliminação: Fração do volume de distribuição que se limpa da droga a cada hora ou a cada dia. K=clearance plasmático/volume de distribuição.

Meia-vida biológica: Tempo necessário para que a concentração plasmática de uma droga se reduza à metade. Dado em horas. É recíproco de K pela relação: t½=0,693/K.

Farmacocinética de primeira ordem: Transferência de drogas (absorção ou eliminação) que se faz em percentagem constante, havendo uma redução logarítmica, ao longo do tempo, da concentração sangüínea e da dose corporal total. A maioria das drogas apresenta este comportamento.

Farmacocinética de ordem zero: A transferência se dá, não em termos percentuais, mas por uma quantidade fixa de droga, decorrente da saturação dos processos metabólicos.

Classificação das drogas quanto aos mecanismos de eliminação:

As drogas podem ser classificadas, de acordo com o seu mecanismo predominante de eliminação, em: drogas de eliminação renal, drogas de eliminação renal e não-renal e drogas de eliminação não-renal.

A insuficiência renal reduz o clearance plasmático das drogas cujos mecanismos de eliminação dependam da integridade funcional dos rins. Nessa situação, podem acumular-se no organismo, se forem administradas em suas doses usuais. Faz-se necessário, após a dose de ataque, um ajuste ao nível de função renal do paciente.

ETAPAS  DO  AJUSTE  DE  DROGAS  EM  INSUFICIÊNCIA RENAL

Cálculo da velocidade de filtração glomerular (VFG): Caso não se disponha do Clcr determinado laboratorialmente e a função renal seja estável, pode-se estimar a VFG através da fórmula:

Sexo masculino:
Clcr=(140-idade).(peso corporal em kg)/72/creatinina plasmática   [1]
Sexo feminino: -15% do valor estimado.

Em situação de função renal instável, dispõe-se desta fórmula:

Sexo masculino:
Clcr={[293-2,03.idade].[1,035-0,01685(cr1+cr2)]+49(cr1-cr2)/dias}/cr1+cr2
Resultado em ml/min/70kg de peso corporal.
Sexo feminino: -15%.

Estas fórmulas não serão válidas nas seguintes condições: pacientes sendo submetidos à diálise, portadores de anormalidades na massa muscular como caquexia, distrofias musculares, trauma e rabdomiólise.

Determinação da dose de ataque: As drogas que apresentam farmacocinética de primeira ordem levam 4 t½ para atingirem a concentração plasmática constante, caso iniciemos o tratamento a partir das suas  doses de manutenção.  Para que se atinja prontamente a dose corporal total é necessário iniciar o tratamento com uma dose de ataque. Esta pode ser assim determinada:

Dose=concentração sangüínea desejada (Cd) X volume de distribuição (Vd).

Exemplo: Gentamicina para um paciente de 60kg de peso. Cd=6mg/l, Vd=0,25l/kg=15 l. Dose de ataque=6mg/l x 15 l=90mg.

Escolha do método de manutenção: Podemos utilizar três métodos para o ajuste de posologia de drogas em insuficiência renal: 

    •  D = redução da dose, mantendo-se o intervalo usual de administração.

 Este método tende a resultar em concentrações terapêuticas máximas (Cmax, “Pico”) baixas e concentrações mínimas (Cmin, “Vale” ou trough) mais altas, nos pacientes com insuficiência renal. Ao evitar grandes flutuações da concentração plasmática é um método muito bom para a prescrição de drogas antiarrítmicas e digitálicos. Uma dose de ataque é sempre necessária para se evitar concentrações sub-terapêuticas no início do tratamento.

  •  I = prolongamento do intervalo de administração, mantendo-se a dose usual. Provê  concentrações  máximas pós-dose e concentrações médias, nos pacientes com insuficiência renal, semelhantes as obtidas nos pacientes normais. Entretanto, pode resultar em níveis sub-terapêuticos prolongados, antes da próxima dose, devido a concentrações mínimas baixas. Tem sido considerado o método mais seguro para a prescrição dos antibióticos  aminoglicosídeos, ao diminuir o risco de ototoxicidade das concentrações pós-dose e nefrotoxicidade, relacionada às concentrações mínimas altas.
  •  D/I = associação dos métodos D e I. Resulta em concentrações médias mais estáveis e evita baixas concentrações plasmáticas  pré-dose.

Qualquer que seja o método de ajuste, o seu objetivo primordial é conseguir eficácia terapêutica sem toxicidade. Para tanto a monitorização da concentração sangüínea das drogas, quando possível, é um recurso inestimável. Isto não dispensa o senso clínico na avaliação dos efeitos terapêuticos e tóxicos. Em  nosso meio, onde essas dosagens não são facilmente acessíveis, a prescrição baseada no conhecimento prévio das características farmacocinéticas, ao lado do acompanhamento clínico cuidadoso, é a conduta mais adequada para superar essa dificuldade.

Os métodos de ajuste de doses de drogas em insuficiência renal são baseados na determinação de um Fator de Ajuste (FA), o qual permitirá a adaptação da dose, do intervalo de administração, ou de ambos. O  FA é geralmente a razão entre um parâmetro farmacocinético de eliminação num dado nível de função renal e o seu valor normal. Assim sendo, meia-vida biológica na insuficiência renal/meia-vida biológica normal (t½ir/t½n), constante francional de eliminação na insuficiência renal/constante fracional de eliminação normal (Kir/Kn) e  clearance plasmático na insuficiência renal/clearance plasmático normal (Clpir/Clpn), dão fatores de ajuste.

Um método bastante prático para o ajuste baseia-se no conhecimento do valor fracional  (F) do clearance plasmático de uma droga (Clpir) em relação ao normal (Clpn): F = Clpir/Clpn. O clearance plasmático das drogas na insuficiência renal (Clpir) é a soma dos clearances renal e não-renal (Clpir = Clr + Clnr). No paciente com função renal zero, o Clpir será igual ao Clnr (Clpir = Clnr). O valor de F no paciente anúrico será:  F = Clpir/Clpn = Clnr/Clpn. Nesta condição F será denominado FØ (F zero). FØ é, portanto, a fração entre o Clpir e o Clpn quando a função renal é zero (FØ = Clnr/Clpn).

O valor de F de uma droga num paciente portador de função renal normal será igual a 1 [F = (Clnr+Clr)/Clpn = 1].

Admitindo-se que o clearance renal de uma droga correlaciona-se diretamente com a velocidade de filtração glomerular (VFG), dada pelo clearance da creatinina, e considerando-se a VFG normal igual a 100ml/min, chegou-se à seguinte fórmula:

    F = FØ + (1-FØ)*Clcr/100

Na tabela F encontram-se os valores de FØ  e  F de diversas drogas terapêuticas de uso clínico freqüente, em vários níveis de velocidade de filtração glomerular. Para acharmos o fator de ajuste “F” procedemos do seguinte modo: multiplicamos o Clcr/100 do paciente pelo 1-FØ da droga e somamos ao FØ.

Clcr/100 X  1-FØ + FØ = F

Drogas como a Doxiciclina, eliminadas  por via não-renal, terão um F = FØ = 1, em qualquer nível de função renal. A Cloxacilina, eliminada por via renal e não-renal, cujo FØ = 0,75, terá  por exemplo, num paciente com clearance da creatinina de 30ml/min, um F = 0,82. Isto quer dizer, que neste nível de função renal o seu clearance plasmático reduziu-se a 82% do normal. Já, a Gentamicina, eliminada predominantemente por via renal (FØ = 0,03), neste paciente terá um F = 0,32, isto é, seu clearance plasmático estará reduzido a 32% do normal.
Suponhamos um paciente do sexo masculino, com 70kg de peso, 40 anos de idade, apresentando uma creatinina plasmática estável de 5mg/dl,  que precise receber Gentamicina. A dose de ataque será 1mg/kg de peso (70mg). Inicialmente devemos estimar o clearance  da  creatinina  pela  fórmula  [1].   Neste caso,  Clcr = 19,4ml/min.   A   seguir   buscamos  na  tabela  o  FØ  da Gentamicina  (FØ = 0,03),  calculamos o 1-FØ (= 0,97), e procedemos então ao cálculo  do fator de ajuste F.

  Clcr/100  x  1-FØ  +  FØ  =  F
     0,194    x    0,97 + 0,03 = 0,22

A dose de manutenção poderá ser calculada pelos métodos D, I ou D/I, através  do fator de ajuste F = 0,22:

Método D: 70mg x 0,22 = 15mg de 8/8 horas.
Método I: 8 hs/0,22 = 36 horas, 70mg de 36 em 36 horas.
Método D/I: 70mg/8 hs x 0,22 = 1,93mg/hora ou 23mg de 12/12 horas.

Os  “F” de diversas drogas, para  níveis de filtração glomerular de 0 a 70ml/min, encontram-se, já calculados, na tabela “F”.

Monitorização dos níveis séricos da droga:

  l——————->Dose de manutenção (métodos D, I ou D/I)
  l                            l
  l              Depois de 3-4 doses, determinar  pico e vale:
  l                           |  Sub-terapêuticos
  l                           l       l
  l—————— l          Níveis —— Terapêuticos
                                      l                  |
                         l   Tóxicos     Monitorizar  a  VFG
                                                             l
                                              10 – 12 dias= Final do Tratamento

Nova dose = Dose velha x Concentração desejada/Concentração velha

Reposição de drogas pós-diálise:O clearance plasmático de uma droga num paciente em hemodiálise pode ser matematicamente representado por:  Clp = Clr + Clnr + Cld. Se uma droga é significativamente dializada, isto é, quando a hemodiálise remove mais que 20% do conteúdo corporal da droga, uma dose suplementar deve ser administrada. O decréscimo do conteúdo corporal da droga durante a hemodiálise (HD) segue a farmacocinética de primeira ordem, segundo um padrão exponencial que é descrito pela equação:

D = Dø.e-exp(Cl/Vd.t) ou D/Dø = e-exp(Cl/Vd.t).

D = dose corporal total em qualquer tempo  t
Dø = dose corporal total no início da HD
Cl = clearance plasmático durante a HD
Vd = volume de distribuição da droga no organismo
t = tempo de duração da HD

No  final do  procedimento  a  fração  D/Dø da  droga  permanece no organismo. 1-D/Dø deve ser reposta, se essa quantidade superar 0,20 (20%). A cinética da diálise peritoneal das drogas segue o mesmo princípio matemático aplicado à hemodiálise.

Para facilitar a reposição de drogas pós-diálise, evitando cálculos matemáticos que exigem a manipulação de tabelas extensas para se encontrar o Vd e Clp durante a diálise, acharemos na tabela a seguir, as percentagens que são removidas numa hemodiálise de 4 horas de duração e na diálise peritoneal, e que deverão ser repostas ao término do procedimento dialítico, para que os níveis  terapêuticos sejam mantidos.


BIBLIOGRAFIA

1. BARSANULFO PEREIRA, E. Rim e Drogas, Manual Baseado em Princípios Farmacocinéticos 1ª ed., Robe Editorial, São Paulo,1988, 220 p.

2. _______ . Uso de Medicamentos em Insuficiência Renal. In: RIELLA, M.C. Princípios de Nefrologia e Distúrbios Hidroeletrolíticos. Capítulo 45, pg. 547-588, Ed. Guanabara-Koogan, Rio de Janeiro, 1996, 740 p.

3. CHENNAVASIN, P. & BRATER, C. Nomograms for Drug Use in Renal Disease. Clinical Pharmacokinetics 6:193-214, 1981.

4. CHOI, L & JOHNSON, A.C. Dialyzability of Drugs. Dialysis & Transplantation 16(10):537-540, 1987.

5. CUTLER, R & FORLAND, S.C. Changing Drug Dosage in Renal Insufficiency. Back to Basics, parts 1-6, Dialysis & Transplantation, march, may, june, september, october, november, 1989.

Rolar para cima