Alterações Renais em Filariose Bancroftiana

Maria Eliete Pinheiro
Profa. Adjunto de Nefrologia – Chefe do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Alagoas – Doutorado em Nefrologia pela UNIFESP-EPM.

INTRODUÇÃO

A filariose linfática consiste numa doença produzida por helmintos da classe Nematoda das espécies Wuchereria bancrofti, Brugia malayi e Brugia timori. Apenas a primeira espécie tem relevância médica nas Américas, podendo ser encontrada no Haiti, Costa Rica, República Dominicana, Trinidad e Tobago, Suriname, Guiana e Brasil (13, 34)

A doença manifesta-se de diversas maneiras, desde formas assintomáticas até quadros bem caracterizados como hidrocele e elefantíase (12,30,34). A filariose bancroftiana acomete principalmente adultos jovens. As manifestações clássicas de filariose ocasionadas por Wuchereria bancrofti são aquelas associadas com dano linfático; com hiperresponsividade ao parasito ou estado assintomático no qual microfilária é encontrada na circulação periférica.

A literatura apresenta vários relatos de ocorrência de anormalidades renais em pacientes com infecção filarial, sem entretanto estabelecer de forma clara o grau de lesão nesta patologia. São escassos os relatos com relação ao tratamento e envolvimento renal, portanto a associação entre filariose bancroftiana e doença renal ainda necessita de melhor caracterização. Existem na literatura relatos da ocorrência de glomerulonefrites na vigência de doença filarial, bem como de hematúria e/ou proteinúria (sem quilúria associada) (7,9). O esclarecimento desta possível associação tem importância relevante no diagnóstico de doença renal com etiologia desconhecida em áreas endêmicas para filariose bancroftiana, pois a alteração renal pode ser uma expressão desta patologia.

Na filariose bancroftiana há aspectos peculiares à resposta imune, celular e/ou humoral, do hospedeiro. OTTESEN (1980) demonstrou que a patologia da bancroftose estaria associada à agressão direta ou imunológica dos parasitas adultos e das mf, levando a diferentes formas clínicas (24). Segundo Ottesen, existem duas vias para desenvolvimento de dano linfático, as quais estão relacionadas com a presença ou não de microfilária na circulação periférica: 

– reação inflamatória mediada pela resposta imune do hospedeiro – amicrofilarêmicos

– dano linfático não mediado imunologicamente – microfilarêmicos

A manifestação clínica da patologia filarial dependeria da resposta imunológica do hospedeiro e do estágio do parasito envolvido. Os mecanismos envolvidos nas diferentes respostas parecem refletir modelos de respostas por citoquinas T diferentes. Pacientes assintomáticos, os “microfilarêmicos assintomáticos”, que têm sido previamente descritos como imunossuprimidos com relação à sua geração de resposta imune pró-inflamatória (tipo-Th1) ao antígeno parasitário (Ag), são agora reconhecidos como receptivos ao Ag, mas para produzir citoquinas e mediadores que tem primariamente efeitos anti-inflamatórios (tipo-Th2) (25).

O princípio básico da perspectiva da doença filarial é a resposta imune diferencial entre a exposição individual à infecção resultando em desenvolvimento de manifestações clínicas diversas. Existem poucas informações sobre a história natural da filariose linfática e não há nenhuma evidência de que a progressão de uma forma clínica para outra seja inevitável.

ALTERAÇÕES RENAIS

Algumas das manifestações clínicas que têm sido descritas associadas à filariose, como artrite, urticária, hematúria e proteinúria encontram-se em estudo (8, 34).

Hematoquilúria é uma conhecida complicação da filariose, entretanto hematúria aquilúrica, apesar de rara, também tem sido relatada nesta patologia (10,19,21,31). Ao contrário do que ocorre com a quilúria, a causa de hematúria isolada, ainda não foi esclarecida. Entre os possíveis mecanismos considerados mais prováveis estão a ruptura de pequenos vasos sangüíneos para dentro dos capilares linfáticos dilatados ou diapedese de corpúsculos sangüíneos para dentro dos canais linfáticos (19).

Outras formas de envolvimento renal associadas à filariose têm sido documentados na literatura. Nos últimos 20 anos foram descritos casos de glomerulonefrite membranosa (1,27); hematúria recorrente (10, 19, 21); glomerulonefrite aguda eosinofílica (5); glomerulonefrite com presença de depósito de IgG, IgM e C(32); glomerulonefrite mesangio-proliferativa (3,23,35); glomerulonefrite por imunocomplexos em pacientes com quilúria (23) , glomerulonefrite esclerosante focal (26) e membrano-proliferativa (6).

DATE (1983), estudando 50 pacientes com glomerulonefrite membrano-proliferativa (GNMP) na Índia encontrou, como doença associada e possível fonte crônica de antigenemia, filariose bancroftiana em três (6%) destes indivíduos. As alterações histológicas renais foram depósitos subendoteliais, com ou sem depósito mesangial, tendo ocorrido eosinofilia e hipocomplementemia em 88% do total de pacientes (GNMP Tipo 1). Os achados clínicos e laboratoriais nos 50 pacientes, exceto pela eosinofilia, foram semelhantes aos de outros estudos de GNMP. Por outro lado, a prevalência de GNMP tipo2 foi mais rara do que na maioria dos relatos de países desenvolvidos ocidentais, o que poderia ser explicado pela conhecida associação de GNMP tipo1 com condições de antigenemia crônica comum nos trópicos (6). Este foi a primeiro relato de filariose bancroftiana associada à GNMP, embora associação com outros tipos histológicos já houvesse sido anteriormente descrita (3,5)

Alterações renais associadas com outra espécie de filária, a Loa loa, foram descritas, onde proteinúria assintomática foi a principal apresentação clínica, hematúria microscópica discreta ocorreu frequentemente e ocasionalmente mf (geralmente mortas), puderam ser vistas no sedimento urinário. Os poucos casos que incluíram biópsia renal, mostraram alterações patológicas descritas como “glomerulonefrite crônica”, “edema de alguma ou todas paredes capilares, algumas vezes com proliferação endotelial” ou “infiltração do interstício renal com células mononucleares” (36). Glomerulopatia membranosa também tem sido relatada em infestação por Loa loa (27). De maneira geral, infecção por Loa loa tem sido associada com glomerulopatia membranosa, membranoproliferativa ou lesão esclerosante crônica, sendo que PAKASA e cols. (1997) descreveram o primeiro caso de Glomeruloesclerose segmentar e focal colapsante secundária à infestação por este nematoda ( 26).

DREYER (1992), observou alterações renais em 45% de 20 microfilarêmicos assintomáticos não tratados. Neste trabalho foi evidenciada a presença de hematúria e/ou proteinúria. Em virtude dos pacientes serem microfilarêmicos aventou-se a possibilidade da mf desempenhar um papel mecânico na gênese do dano renal. As mf poderiam alcançar o túbulo renal por passagem através dos capilares glomerulares ou por ruptura de linfáticos renais (19). Contudo, como não foi detectada microfilarúria nestes pacientes, levantou-se a hipótese da lesão renal ser secundária à formação de complexos antígeno-anticorpo iniciados pela parasitemia (9) . Outros autores já sugeriram que a lesão renal, embora rara, possa ocorrer devido a resposta imunológica do hospedeiro pela deposição de imunocomplexos (ICs) (5,6,7,23,32).

Em relação a ação de ICs circulantes detectados por alguns autores nesta patologia (17,23,29) , em apenas um estudo em pacientes com Oncocercíase, associa-se a presença de antígeno filarial com anormalidades em biópsias renais (20). Achados similares têm sido produzidos experimentalmente em modelos animais de O. volvulus, através de microscopia óptica, por KLEI (1974), que encontrou espessamento de membrana basal glomerular (MBG), depósitos densos subendoteliais e na MBG, que estavam associados com microfilaremia elevada e prolongada. Os depósitos subendoteliais podem corresponder a complexos Ag-Ac descritos em outras doenças. Entretanto a morfologia e distribuição destes depósitos, igualmente distribuídos ao longo do capilar glomerular, difere daqueles usualmente associados com a deposição de ICs, os quais formam depósitos eletron-densos randomicamente localizados ao longo da MBG, subepiteliais, intramembranosos ou áreas subendoteliais da parede capilar glomerular. A natureza exata das lesões descritas é desconhecida até o momento, embora elas possam ser induzidas por Ags da mf e/ou verme adulto (14).

O mecanismo de deposição dos ICs circulantes detectados permanece especulativo na filariose bancroftiana. Apesar de existirem amplas evidências da presença destes ICs circulantes, pouco se sabe sobre a caracterização do antígeno no IC (7). Além disto, outras infecções parasitárias estão presentes em áreas onde filariose é endêmica e outros Ags, provenientes destas infecções, podem também induzir ICs circulantes. Contudo, tem sido demonstrado que os ICs são capazes de modular a resposta imune e é sabido que imunomodulação é um achado primário da infecção filarial. Adicionalmente, a capacidade patogênica dos ICs é bem conhecida e várias das manifestações filária-induzidas são compatíveis com etiologia mediada pelos mesmos (7,17).

Uma importante contribuição para o entendimento deste problema foi realizada por RAMAPRASAD (1988), o qual estudou o efeito da terapia com o medicamento Dietilcarbamazina (DEC) sobre microfilaremia e estado imune de 27 portadores de Wuchereria bancrofti durante 2 anos. Persistência da microfilaremia foi observada em quatro dos 27 casos após terapia com DEC. Estes pacientes foram novamente tratados, ocorrendo negativação de microfilaremia no 600 dia. Adicionalmente, ocorreu diminuição gradual dos títulos médios de anticorpos (Acs) filariais IgM e IgG e aumento significante nos níveis de antígeno microfilarial (Ag mf) no 70 dia, seguido por queda gradual dos mesmos, alcançando níveis menores que os níveis pré-tratamento no 600 dia. Ocorreu também a presença de imunocomplexos (ICs) filariais em todas as amostras, mostrando ICs circulantes no 70 dia, o que deve ser relacionado à queda de Acs IgM e IgG na circulação. De forma similar aos Ags, os níveis de ICs também mostraram diminuição até o 600 dia. Entretanto, cerca de 12 pacientes mostraram microfilaremia e antigenemia no 3600 dia, mostrando que a DEC tinha atenuado apenas temporariamente o efeito do verme adulto.

Ainda com relação a este estudo, Ag mf foi encontrado na urina em 41% dos pacientes antes do tratamento, e em todos os pacientes durante o curso do mesmo, guardando correlação com a administração de DEC e com a elevação de Ags e ICs sangüíneos. Estes resultados indicam que a detecção de Ag na urina pode ser útil como marcador para determinar se o paciente tomou ou não a droga em programas de controle filarial (29).

De todos os parâmetros estudados, a detecção de Ag mf foi considerado como o mais promissor indicador de infecção, mesmo quando mfs não forem detectadas no sangue periférico (29). Corroborando esta afirmação, WEIL (1988) observou que apesar dos níveis de microfilaremia caírem drasticamente após o tratamento, os títulos de Ag mf e Ac IgG estavam aumentados 1 mês após o tratamento e, apesar de apresentarem diminuição progressiva, encontravam-se presentes 1 ano após, com e sem microfilaremia residual. Estes resultados sugerem que DEC tem atividade macrofilaricida parcial sobre W. bancrofti, pelo menos na dosagem preconizada pela OMS para a fase de microfilaremia. A impressionante redução de mfs após o tratamento, apesar da significante persistência de antigenemia, pode então ser explicada por efeito subletal da droga sobre os vermes adultos. Portanto, estes achados sugerem que a detecção do Ag parasitário representa uma valiosa contribuição para o monitoramento da eficácia da terapêutica, o que levará a melhorar o uso das drogas existentes e a avaliação de novas drogas para filariose (29,33)

A avaliação da eficácia da DEC sobre o parasito adulto “in vivo”, através da observação de “ninhos” destes vermes que foram detectados em área escrotal por ultra-sonografia, mostrou que uma proporção significante dos mesmos não foram suscetíveis à DEC durante o período de estudo (22). Esta observação corrobora os achados anteriores de atividade macrofilaricida apenas parcial.

Outra alteração renal importante encontrada em filariose foi a presença de proteinúria, significativamente mais elevada que no grupo controle, observada por NGU (1985) em um estudo epidemiológico de 1.011 pacientes, realizado em região endêmica para Oncocercíase. Em uma segunda fase do estudo, foi realizada investigação mais detalhada, incluindo biópsia renal de 63 pacientes consecutivos, admitidos em hospital de referência, com proteinúria severa e/ou insuficiência renal, provenientes da zona de Oncocercíase. Havia uma variedade de possíveis fatores causais para a nefropatia, mas em 9 casos antígeno filarial foi demonstrado nos depósitos de imunocomplexos no rim. Embora houvessem múltiplas infecções parasitárias coexistindo, não se acreditou que esta fosse a causa da freqüência maior de nefropatia neste grupo, porque a maioria destes parasitos eram intestinais que não causam alterações renais. A maior diferença entre as duas populações com respeito à seu reservatório de antígeno foi a presença de O.volvulus na maioria do grupo com prevalência mais elevada de proteinúria (20).

Mais recentemente, LANGHAMMER (1997) encontrou proteinúria em vários estágios de filariose linfática em pacientes infectados por Brugia malayi. O estudo constituiu-se da avaliação de grupos de pacientes em 3 diferentes fases da doença, indivíduos endêmicos normais com altos níveis de Ac específicos e controles não-endêmicos. Os portadores de filariose eram assim distribuídos: 1- microfilarêmicos assintomáticos; 2- pacientes com manifestações agudas e 3- pacientes com manifestações crônicas. Vários pacientes foram submetidos à tratamento com DEC. Foi investigada proteinúria quantitativa e realizados testes complementares para discriminar entre lesão tubular ou glomerular. Fator reumatóide IgG sérico também foi determinado. Nem os endêmicos normais nem os controles tiveram evidências de alterações renais, já os pacientes com infecção filarial apresentaram proteinúria elevada significantemente quando comparados ao grupo controle. Não houve diferença significante entre os 3 grupos de indivíduos infectados, embora os níveis de proteinúria fossem mais elevados nos casos de doença crônica, afetando predominantemente o glomérulo e mais reduzidos nos microfilarêmicos assintomáticos, com características de lesão tubular. Tratamento com DEC não alterou significantemente grau ou características da proteinúria, mas níveis de microalbuminúria relativamente elevados na urina de pessoas tratadas sugeriram alterações glomerulares nestes casos. Fator reumatóide IgG não pareceu desempenhar papel na infecção filarial associada com doença renal. Concluindo, o estudo sugere que proteinúria parece ser um evento comum em filariose por Brugia malayi, envolvendo ambos os compartimentos: tubular e glomerular e que sua patogênese é complexa (16).

Para determinar nefropatia em uma fase inicial da doença PINHEIRO (1998), estudou indivíduos microfilarêmicos provenientes da população de Maceió antes (AT), durante (DT) e após (PT) o tratamento com Dietilcarbamazina comparando-os a grupo controle. Foram avaliados 96 microfilarêmicos assintomáticos, entre os quais 23 foram submetidos a investigação mais minuciosa. Os pacientes foram selecionados randomicamente, sendo 04 (17,4%) mulheres e 19 (82,6%) homens, com 20 + 8 (X + DP) anos. Todos os indivíduos foram avaliados clínica e laboratorialmente AT, no 5o. e 11o. dias de DEC, sob regime de internação. Eles também foram avaliados com 1, 3, 6, 12, 18 e 24 meses após tratamento. Avaliação diagnóstica foi feita através de uroanálise; proteinúria de 24 h; microfilaremia; microfilarúria; creatinina; clearance de creatinina; uréia; microalbuminúria; “Retinol Binding Protein” (RBP); C3 e C4; eletroforese de proteínas séricas; hemograma e protoparasitológico. Raio-X simples de abdome e ultra-sonografia renal e de vias urinárias também foram realizados em todos os pacientes e biópsia renal em 10 deles. Um grupo controle de 10 indivíduos, com 25 + 2 anos foi submetido aos mesmos procedimentos exceto, obviamente, à biópsia renal.

O principal achado neste estudo foi proteinúria, conforme gráfico abaixo:

A proteinúria encontrou-se alterada em 95,6 % dos pacientes, foi persistente, em níveis menores do que 1g/dia, sem influência postural ou de esforço físico, já que foi dosada com paciente em repouso, sob regime de internação hospitalar. Microfilaremia AT era 10,9 + 15,8 (X + DP) mf/ 20 m l mas todos os pacientes negativaram 6 meses depois. RBP foi normal e microalbuminúria estava discretamente elevada. Microfilarúria, assim como hematúria, foi encontrada em 4,3% dos casos.

Como a proteinúria persistiu, biópsia renal foi realizada em 10 pacientes. As alterações renais encontradas foram atrofia tubular focal discreta, glomeruloesclerose isolada e fusão focal discreta de pedicelos. Vale ressaltar que a biópsia foi realizada após o tratamento específico com DEC que pode ter modulado qualquer alteração histológica induzida pela filariose, sendo que não podemos afirmar com certeza que as alterações mínimas encontradas sejam devidas à parasitemia (28). A permanência da proteinúria por um tempo mais prolongado provavelmente se deve à persistência da infecção filarial, ou da resposta imune do hospedeiro, apesar da microfilaremia haver negativado (25).

Assim, estes dados sugerem que a proteinúria seja de provável origem glomerular, já que os níveis de RBP foram normais, e possivelmente determinada pela infestação filarial. Apesar do achado de microfilarúria em 01 paciente durante o tratamento, não é possível implicar o dano mecânico na gênese dessa possível lesão glomerular. A ausência de dados de literatura em população semelhante impede de estabelecer comparação e reafirma a necessidade de investigação de Ag filarial em biópsia renal para estabelecer relação causal (28).

A relação causa-efeito entre proteinúria e as outras alterações renais encontradas em portadores de filariose bancroftiana não está totalmente estabelecida. Grande parte dos trabalhos consistiram de relato de casos em que o diagnóstico desta patologia foi geralmente feito por exclusão, devido ao fato destes pacientes estarem em vigência de infecção filarial, ou então por ausência de outros antígenos que são associados com nefrite por imunocomplexos e apresentarem boa resposta ao tratamento específico. Faz-se necessário mais estudos prospectivos, em várias fases da doença, para avaliação da bancroftose como promotora de dano renal, já que na maioria dos estudos disponíveis as evidências de nefropatia induzida pela filariose bancroftiana foram circunstanciais e as duas únicas avaliações prospectivas foram realizadas em microfilarêmicos assintomáticos, o que impossibilitou que fossem realizadas biópsias antes do tratamento, dificultando assim o diagnóstico mais preciso. 

Uma outra possibilidade é que a filariose tenha um comportamento semelhante ao da esquistossomose na qual seria esperado que a doença glomerular por estar relacionada a uma doença parasitária crônica, imunologicamente mediada, o tratamento específico desta parasitose pudesse reverter ou prevenir a progressão da glomerulopatia. Entretanto vários estudos indicam que uma vez deflagrado o quadro clínico, a glomerulopatia já é avançada, irreversível, em um estágio no qual os mecanismos não imunológicos de progressão da doença renal já estão ativados e independem da presença ou ausência do parasita (18).

Na esquistossomose a natureza imunológica da lesão glomerular está bem estabelecida e a lesão renal é progressiva pela indiferença a esquemas terapêuticos diversos (11). Entretanto a constatação de lesões incipientes e sub-clínicas em alguns pacientes, oferece perspectivas de que nesta fase é possível que possam ser bloqueados os mecanismos que a perpetuam (2).

Se realmente existe um paralelismo entre as duas parasitoses com relação à fisiopatogênese e resposta terapêutica, apenas estudos longitudinais com ênfase na avaliação imunológica e terapêutica nas várias fases da doença poderão, possivelmente estabelecer esta resposta.

DISCUSSÃO

Manifestações clínicas em todas as 3 filarioses linfáticas (Wuchereria bancrofti, Brugia malayi e Brugia timori) são muito similares. Enquanto as mais características são aquelas que refletem as consequências obstrutivas do dano linfático (elefantíase e hidrocele), outras manifestações oligo ou mesmo inteiramente assintomáticas da infecção são também comuns. Como estes vários tipos de respostas relacionam-se uns aos outros patogeneticamente é a maior dificuldade no entendimento da doença filarial, sendo esta decorrente do fato que as descrições das diferentes síndromes clínicas derivam de observações de cortes transversais (25). Como resultado, muito pouco é conhecido sobre a “história natural” ou curso da infecção atual na filariose.

Avaliados segundo a resposta imunológica, os indivíduos microfilarêmicos assintomáticos são hiporresponsivos, apresentando reações inflamatórias e imunológicas mínimas. Por outro lado, há pessoas que mostram resposta imune pró-inflamatória, reatividade ao antígeno da filária e evoluem com manifestações agudas da doença (25). Esta dualidade na regulação imunológica do hospedeiro para responder ao Ag circulante tem sido descrita em doenças infecciosas, auto-imunes, além de processos imuno-inflamatórios tipo glomerulonefrites (4,15) .

A resposta imune diferencial entre os indivíduos infectados leva portanto à diversas manifestações clínicas, sendo que nos últimos 20 anos tem sido descritas alterações renais como parte destas manifestações. Entretanto a fisiopatogenia da doença renal na filariose ainda não foi esclarecida. Apesar de glomerulonefrite aguda e síndrome nefrótica como complicação de filariose ter sido bem documentada anteriormente, a maioria dos casos foram diagnosticados por esfregaço de sangue periférico. Microfilária como fator causal de lesão renal causa problemas diagnósticos desde que elas raramente são demonstradas dentro de glomérulo renal.

Pelas observações efetuadas até o momento, alterações imunológicas induzidas por ICs são a causa das alterações renais observadas na filariose bancroftiana. Entretanto, enquanto associação entre ICs filária-específicos e lesão renal tem sido bem estabelecida em oncocercíase (20), associação similar ainda não foi feita na filariose bancroftiana, que tem a peculiaridade de não possuir modelo experimental adequado, já que apresenta como único hospedeiro definitivo o homem (12,30) , o que é seu principal fator limitante.

Para estabelecer de forma clara o grau de lesão renal existente nesta patologia, acreditamos que sejam necessários realização de avaliações longitudinais para definir a história natural da doença; estudos posteriores em pacientes na fase crônica da doença, sem tratamento prévio; detecção de Ics circulantes e Ag filarial em biópsia renal, para definir se existe reação imunomediada da patologia.

Apesar de todos os questionamentos levantados, a presença de hematúria e/ou proteinúria na bancroftose, parece consistir uma das formas de expressão desta infeção. Portanto, principalmente em áreas endêmicas de filariose, torna-se importante pensar nesta patologia como diagnóstico diferencial quando estas alterações renais são encontradas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BARIETY,J.; BARBIER, M.; LAIGRE, M.C.; TCHERMA, G.; SAMAREQ, P.; MILLIEZ, P. – Protéinurie et loase. Estude histologique, optique et életronique d’un cas. Bull. Soc. Med. Hop. Paris118: 1015-1025, 1967.
  • BRITO, E. – Nefropatia associada à esquistossomose. In: Jenner Cruz, coord.. Atualidades em nefrologia. São Paulo, Ed. Sarvier, 1988. p. 245-251.
  • CHUGH, K.S.; SINGHAI, P.C.; TEWURI, S.C.; NATH, I.V.S.; DATTA, E.N. – Acute glomerulonephritis associated with filariasis. Am. J. Trop. Med. Hyg27(3): 630-631, 1978.
  • COELHO, S.N.; SALEEM, S.; KONIEVCZNY, B.T.; PAREKH, K.R.; BADDOURA, F.K.; LAKKIS, F.G. – Immunologic determinants of suscetibility to experimental glomerulonephritis: role of cellular immunity. Kidney International51: 646-652, 1997.
  • DATE, A.; GUNASEKARAN, V.; KIRUBAKARAN, M.G.; SHASTRY J.C.M.- Acute eosinophilic glomerulonephritis with Bancroftian filariasis. Postg. Med. J., 55: 905-907, 1979.
  • DATE, A.; NEELA, P.; SHASTRY J.C.M. – Membranoproliferative glomerulonephritis in a tropical environment. Ann. Trop. Med. Parasitol.77(3): 279-285, 1983.
  • DISSANAYAKE, S.; GALAHITIYAWA, S.C.; ISMAIL, M.M.- Immune complexes in Wuchereria bancrofti infection in man. Bull. World Health Organ60(6): 919-927, 1982.
  • DREYER, G.; COUTINHO, A.; ALBUQUERQUE, R.- Manifestações Clínicas de Filariose Linfática Bancroftiana. Rev. Ass. Med. Brasil.35(5): 189-196, 1989. 
  • DREYER, G.; OTTESEN, E.A.; GALDINO, E.; ANDRADE, L.; ROCHA, A.; MEDEIROS, Z.; MOURA, I; CASIMIRO, I; BÉLIZ, F.; COUTINHO, A.- Renal abnormalities in microfilaraemic patients with Bancroftian Filariasis. Am. J. Trop. Med. Hyg., 46(6): 745-751, 1992.
  • DUFOUR, B. & LEPAGE, T.- Une cause rare d’hématurie: la filariose. J. Urol. Nephrol.(Paris), 84: 231-235, 1978.
  • DUTRA, M.; CARVALHO FILHO e col. – Tratamento da glomerulopatia da esquistossomose mansônica: efeito de corticóides, ciclofosfamida e esquistossomicidas. Rev. Inst. Med. Trop. São Paulo21:63, 1978. 
  • FERREIRA, F.S.C. & ROCHA, L.A.C.- Filaríases. In: Veronesi, R. Doenças Infecciosas e Parasitárias, 8Ed., Rio de Janeiro, Guanabara-Koogan, 1991.
  • FONTES, G. – Aspectos epidemiológicos da filariose linfática causada pela Wuchereria bancrofti no Estado de Alagoas. Belo Horizonte, 1996. (Tese – Doutorado – Universidade Federal de Minas Gerais).
  • KLEI, T.R.; CROWELL, W.A.; THOMPSON, P.E. – Ultrastructural glomerular changes associated with filariasis. Am. J. Trop. Med. Hyg., 38(4): 608-618, 1974.
  • LAKKIS, F.G.; BADDOURA, F.K.; CURET, E.N.; PAREKH, K.R.; FUKUNAGA, M.; MUNGER, K. – Anti-inflamatory lymphokine mRNA expression in antibody-induced glomerulonephritis. Kidney Int49:117-126, 1996.
  • LANGHAMMER, J; BIRB, H.W.; ZAHNER, H. – Renal disease in lymphatic filariasis: evidence for tubular and glomerular disorders at various stages of the infection. Trop. Med. Int. Health2(9): 875-884, 1997.
  • LUNDE, M.N.; PARANJAPE, R.; LAWLEY, T.J.; OTTESEN, E.A.- Filarial antigen in circulating immune complexes from patients with Wuchereria bancrofti filariasis. Am. J. Trop. Med. Hyg., 38(2): 366-371, 1988.
  • MARTINELLI, R. & ROCHA, H. – Revisão/atualização em nefrologia clínica: envolvimento glomerular na esquistossomose mansônica. J. Bras. Nefrol18(3): 279-282, 1996.
  • MUKHERJEE, S.K.; MUKHERJEE, A.K.; SEN, J.K.- Filariasis with recurrent hematuria. JAMA ; 230(9): 1254-1255, 1974.
  • NGU, J.L.; CHATELANAT, F.; LEKE, R.; NDUMBE, P.; YOUMBISSI, J. – Nephropathy in Cameroon: evidence for filarial derived immune-complex pathogenesis in some cases. Clin Nephrol24(3): 128-134, 1985 
  • NIGAM, P.; SRIWASTAVA, R.P.; GUPTA, P.C.; SHARMA, R.S.; VAJPAYEE, G.N.- Haematuria in filariasis. Indian Med. Assoc., 62: 249, 1979.
  • NORÕES, J.; DREYER, G.; SANTOS, A.; MENDES, V.G.; MEDEIROS, Z.; ADDISS, D. – Assesment of the efficacy of diethylcarbamazine on adult Wuchereria bancrofti in vivo. Trans. Roy. Soc. Trop. Med. Hyg., 91(1): 78-81, 1997.
  • ORMEROD, A.D.; PETERSEN, J.; HUSSEY, J.K.; WEIR, J.; EDWARD, N.-Immune complex glomerulonephritis and chronic anaerobic urinary infection-complications of filariasis. Postg. Med. J., 59: 730-3, 1983.
  • OTTESEN, E.A.- Immunopathology of lymphatic filariasis in man. Springer Semin. Immunopathol.2: 373-385,1980.
  • OTTESEN, E.A.- Infection and disease in lymphatic filariasis: na immunological perspective. Parasitology104: 871-879, 1992.
  • PAKASA, N.M.; NSEKA, N.M.; NYIMI, L.M. – Secondary Collapsing Glomerulopathy associated with Loa Loa Filariasis. Am. J. Kidney Dis., 30 (6): 836-839, 1997.
  • PILLAY, V.K.G.; KIRCH, E.; KURTZMAN, N.A – Glomerulopathy associated with filarial loiasis. J. Am. Med. Assoc225: 179, 1973.
  • PINHEIRO, M.E. – Avaliação Renal de Pacientes Portadores de Filariose Bancroftiana, 1998. (Tese de Doutorado – Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina)
  • RAMAPRASAD, P.; PRASAD, G.B.K.S.; HARINATH, B.C. – Microfilaraemia, filarial antibody, antigen and immune complex levels in human filariasis before, during and after DEC therapy. Acta tropica 45: 245-255, 1988.
  • REY, L.- Wuchereria bancrofti e filariose linfática. In: Rey,L., ed. – Parasitologia. 2a ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1991. p. 542-552.
  • SAPICO, F.L. & BALTAZAR, R.F. – Filariasis presenting as a case of gross hematuria. Acta Med. Phil.3 (4): 273-275, 1967.
  • WAUGH, D.A.; ALEXANDER, J.H.; IBELS, L.S. – Filarial chyluria associated glomerulonephritis and therapeutic considerations in the chyluric patient. Aust. N. J. Med.10: 559-62, 1980.
  • WEIL, G.J.; SETHUMADHAVAN, K.V.P.; SANTHANAM, S.; JAIN, D.C.; GHOSH, T.K. – Persistence of parasite antigenemia following diethilcarbamazine therapy of bancroftian filariasis. Am. J. Trop. Med. Hyg., 38(3): 589-595, 1988.
  • WORLD HEALTH ORGANIZATION – Lymphatic filariasis: the disease and its control. Expert commitee on filariasis. Fifth report. Technical reports series, 821, 75pp, 1992.
  • YAP, H.K.; WOO, K.T.; YEO, P.P.B.; CHIANG, G.S.C.; SINGH, M.; LIM,C.H. – The nephrotic syndrome associated with filariasis. Ann. Acad. Med., 11(1): 61-63, 1982.
  • ZUIDEMA, P.J. – Renal changes in loiasis. Folia Med. Neerl14:168-172, 1971.
Rolar para cima