CÁLCULO URINÁRIO E GRAVIDEZ

Istênio Fernandes Pascoal

Doutor em Nefrologia pela Universidade de São Paulo
Pós-Doutorado na Universidade de Chicago
Nefrologista Clínico-Brasília,DF



Introdução

Sintomas decorrentes de cálculo renal constituem um evento raro na gravidez.Quando ocorrem, entretanto, freqüentemente estão associados com infecção do trato urinário (1) e podem induzir trabalho de parto prematuro (2).Além disso, o diagnóstico e o tratamento são mais complicados do que na população não grávida, uma vez que as intervenções comumente utilizadas nestes casos podem atingir o feto. 

Estima-se que 1 em cada 1.500 gestações seja complicada por cálculos renais (3,4), mas a incidência precisa é ainda desconhecida porque a maioria das pacientes são identificadas apenas quando seus cálculos se tornam sintomáticos.

Etiologia 

As alterações anatômicas e funcionais do trato urinário impostas pela gravidez normal predisponhem à formação de cálculo renal.A dilatação dos ureteres e do sistema coletor se estabelece já no primeiro trimestre e persiste até as primeiras semanas após o parto, sendo usualmente maior à direita.Os rins aumentam cerca de 1-1,5 cm em seu comprimento e a capacidade vesical se amplia significativamente.Também ocorre diminuição na peristalse ureteral, presumivelmente devido aos efeitos miorelaxantes da prostaglandina E2 e da progesterona (5,6).A estase urinária subsequente facilita o desenvolvimento de infecção, que propicia a formação e o crescimento de cálculos.

A filtração glomerular aumenta fisiologicamente 40-50% até o final do primeiro trimestre da gestação e permanece elevada até próximo ao termo (7,8).As cargas filtradas de cálcio, sódio e ácido úrico se elevam concomitantemente.Porém, considerando que o pH urinário se torna discretamente alcalino durante a gestação (9), isto pode oferecer alguma proteção natural contra a formação de cálculo de ácido úrico.

A excreção urinária de cálcio pode aumentar 1-2 vezes durante a gestação (7,10) e a supersaturação – um reflexo da concentração e da solubilidade dos sais de cálcio – também aumenta expressivamente na gravidez (7,11).A hipercalciúria e a supersaturação deveriam, portanto, aumentar o desenvolvimento de cálculo renal durante a gravidez entretanto, a incidência de calculose não muda.A proteção contra a formação e o crescimento de cálculos pode ser mediada pelo aumento simultâneo na excreção urinária de inibidores naturais, tais como magnésio e citrato.Também a Nefrocalcina, uma glicoproteina ácida natural que inibe a formação de cálculo de oxalato de cálcio, tem tanto sua excreção quanto sua atividade aumentada significativamente durante a gravidez normal (10,12).Em síntese, nefrocalcina, citrato, magnésio e pH alcalino parecem contrabalançar o estado hipercalciúrico supersaturado da urina de uma grávida normal.

Cálculos de estruvita (fosfato-amoníaco-magnesiano) se formam apenas quando o trato urinário está infectado com organismos que possuem a enzima urease, como as espécies do Proteus.Embora os cálculos de estruvita possam se formar em sistemas coletores completamente normais, as alterações anatômicas do trato urinário na gravidez podem predispor à formação de cálculo de estruvita, mas há poucos dados relativos à sua real incidência durante a gravidez. 

Diagnóstico 

Cólica renal é a causa mais comum de dor abdominal não obstétrica que requer internação no curso da gravidez (13).Os sinais e sintomas clínicos são semelhantes àqueles observados em mulheres não-grávidas, quais sejam: dor lombar, dor abdominal, náuseas, vômitos, disúria, polaciúria, febre, piúria, cristalúria e hematúria.

A avaliação de mulheres grávidas com suspeita de cálculo renal começa com a história clínica e o exame físico.Atenção especial deve ser dada à idade de início da doença, história familiar, dieta e medicações, infecções urinárias prévias, resultados de radiografias abdominais anteriores e outras complicações clínicas ou cirurgias pregressas.Os exames complementares são orientados pela história.Considerando-se os altos custos de uma investigação completa, torna-se conveniente individualizar o roteiro diagnóstico para cada paciente. 

A ultrassonografia é o meio ideal para se iniciar a identificação de cálculos renais durante a gravidez porque não expõe o feto a radiação ionizante.Porém, como a maioria dos cálculos sintomáticos está localizada nos ureteres, há grandes limitações na sua visualização pela ultrassonografia.Além disso, a dilatação fisiológica do sistema coletor que acompanha a gravidez normal confunde e dificulta a definição da obstrução ureteral.Uma radiografia simples de abdome aumenta significativamente a sensibilidade diagnóstica da ultrassonografia.

A ressonância magnética nuclear não expõe o feto a radiação ionizante e, por isso, tem sido crescentemente utilizada para avaliar a anatomia tanto materna quanto fetal.Embora com muitas vantagens teóricas, ainda existem poucos dados relativos à sua utilização na exploração da calculose renal na gravidez.

A urografia excretora durante a gravidez tem sua indicação restrita às seguintes circunstâncias: a) sintomas de cálculo não responsivos à terapêutica conservadora; b) diminuição da função renal em associação com sintomas de cálculo renal; c) pielonefrite sintomática e refratária à antibioticoterapia, especialmente em grávidas com passado de cálculos.Embora seja oportuno lembrar que estudos radiológicos realmente necessários para a adequada avaliação materna não devem deixar de ser realizados por temor da exposição fetal à radiação (especialmente na segunda metade da gravidez), convém radiografar apenas o lado afetado, a pelve materna deve ser protegida e o número de radiografias deve ser reduzido ao mínimo.

A passagem espontânea de um cálculo renal sintomático traz alívio para a paciente e confirma o diagnóstico para o médico.Cerca de 2/3 dos cálculos sintomáticos durante a gravidez passam espontanemente, mas o restante requer intervenção, seja ainda durante a gravidez ou após o parto (19,20).A dilatação ureteral fisiológica progressiva pode contribuir para a elevada frequência de passagem espontânea de cálculos durante a gravidez.

A calculose renal é diagnosticada mais frequentemente no segundo e no terceiro trimestres (14) e em grávidas multíparas (15).A maior incidência de cálculos sintomáticos no final da gravidez pode se dever à reversão da dilatação ureteral ao nível da impressão femural, habitual nesta fase.A maior indicência em multíparas poderia ser atribuída ao fato de que a calculose renal aumenta com a idade, em ambos os sexos.

Embora o ureter direito fique usualmente mais dilatado do que o esquerdo na gravidez, os cálculos sintomáticos ocorrem com igual frequência em ambos os lados. 

Curso Natural  

O tratamento conservador resulta na passagem espontânea de pelo menos 60% dos cálculos sintomáticos durante a gravidez.Intervenções cirúrgicas e não cirúrgicas são necessárias em cerca de 30% das pacientes.Nos 10% restantes os procedimentos podem ser postergados e realizados após o parto. 

Se um cálculo não é expelido espontaneamente, o passo seguinte é a cistoscopia para remove-lo ou desfazer a obstrução com passagem de um cateter ureteral.Se a cistoscopia não for possível, uma nefrostomia percutânea ou um procedimento aberto estão indicados.Em princípio, estes procedimentos devem ser realizados após o parto, se possível.Indicações específicas para intervenção durante a gravidez incluem: a) infecção persistente a montante da obstrução; b) dor intratável; c) cólica renal precipitando trabalho de parto prematuro refratário à terapêutica; d) piora da função renal com permanência da obstrução; e) obstrução de um rim solitário. 

A complicação não obstétrica mais comum de cálculo renal durante a gravidez é a infecção do trato urinário, que ocorre em até 20% das mulheres grávidas com cálculo (16).Antibioticoterapia oral geralmente é suficiente para tratar a infecção urinária baixa, porém pielonefrite requer hospitalização com administração de antibiótico sistêmico e possível intervenção para reverter a eventual obstrução. 

Mulheres com históra e cálculos recorrentes que estão considerando a possibilidade de gravidez freqüentemente se aconselham antes da concepção, ou no início da gestação, sobre as influências recíprocas entre a calculose e a gravidez.Aparentemente, nem a gravidade nem a atividade da doença se modifica com a gestação.

Tratamento 

Repouso no leito, hidratação e analgesia constituem as medidas iniciais indicadas para grávidas com cálculos sintomáticos.Apenas isto leva à passagem espontânea de pelo menos 50% dos cálculos urinários durante a gestação.Meperidina e morfina são analgésicos narcóticos úteis para tratar a cólica renal e têm sido usadas também durante a gravidez, embora atravessem a placenta rapidamente (17,18).Preparações orais contendo codeína têm sido associadas com malformações fetais e devem ser evitadas durante a gravidez (19)Os anti-inflamatórios não-esteróides têm sido usados com sucesso para tratar cólica renal em mulheres não grávidas, mas devem ser evitados durante a gestação, particularmente próximo ao termo, devidos ao risco de fechamento precoce do ductus arteriosis.

A avaliação metabólica da calculose renal deve ser retardada até pelo menos 3 meses após parto e lactação, uma vez que as alterações no metabolismo do cálcio, ácido úrico e outros ions urinários durante este período produzem resultados bioquímicos transitórios na urina que são clinicamente irrelevantes.A avaliação inicial após o parto deve incluir a dosagem de níveis séricos de cálcio, fosfato, ácido úrico e creatinina; exame sumário (EAS) e cultura de urina; e excreção urinária de 24 horas de cálcio, fosfato, ácido úrico, creatinina, oxalato e citrato.

Algumas medicações usualmente prescritas para pacientes com calculose renal têm efeitos colaterais considerados inaceitáveis para uso durante a gestação.Os tiazídicos aumentam a reabsorção tubular distal de cálcio, reduzindo sua excreção urinária.Estas drogas são comumente usadas para tratar estados hipercalciúricos e, embora apresentem poucos efeitos colaterais fora da gestação, têm sido associadas a trombocitopenia, hipoglicemia e hiponatremia fetais (20). 

Inibidores da xantina oxidase, usados no tratamento da calculose por ácido úrico, paralisa o metabolismo da purina ao nível da hipoxantina, diminuindo os níveis de ácido úrico tanto séricos quanto urinários.Embora não tenham sido observados efeitos em fetos de animais, os dados em seres humanos ainda são escassos e não autorizam seu uso durante a gestação.Medidas terapêuticas recomendadas para tratar cálculos de ácido úrico na gravidez incluem aumento no volume urinário, limitação de purina na dieta e alcalinização da urina para o nível de pelo menos pH 6,0, usando preparações alcalinas de uso oral. 

Cálculos de cistina são habitualmente tratados com D-Penicilamina.Parte de sua ação terapêutica se deve à formação de pontes dissulfeto cistina-penicilamina, que é mais solúvel do que as pontes cistina-cistina e, portanto, mais facilmente excretadas.Penicilamina é teratogênica em ratos e há relatos de anormalidades fetais em seres humanos (21).Devido à possivel teratogenicidade da peniciliamina, o aumento do volume urinário e a alcalinzação da urina constituem as alternativas terapêuticas disponíveis. 

Ao contrário da população não grávida, bacteriúria assintomática durante a gestação, particularmente se acompanhada de cálculos urinários, requer tratamento efetivo baseado na cultura da urina e no antibiograma.Quando os sintomas estão presentes, pode ser necessário tratamento inicial empírico, em cujo caso ampicilina, sulfas (exceto no final da gravidez), cefalosporina e nitrofurantoína constituem as opções plausíveis e seguras.A duração do tratamento deve ser superior ao tradicional período de 10-14 dias, uma vez que o cálculo representa um nidus de infecção potencialmente resistente à esterilização; recomenda-se 3-5 semanas de tratamento ativo, seguido de quimioprofilaxia (por exemplo, nitrofurantoína 100 mg à noite) pelo resto da gravidez. 

Ainda há poucos relatos sobre os efeitos e os riscos da litotripsia em mulheres grávidas, mas sua aplicação em animais de experimentação têm demonstrado congestão e múltiplas hemorragias focais em pulmão, fígado e rins de fetos expostos (22,23).Por outro lado, o emprego eventual da litotripsia em mulheres grávidas não tem sido associado a malformações fetais (24,25).Até o presente, entretanto, o uso de litotripsia durante a gravidez permanece formalmente contraindicado, mas sua utilização inadvertida não constitui razão suficiente para a interrupção da gravidez. 

Sumário

Embora as alterações anatômicas e funcionais da gravidez normal possam predispor à formação de cálculo urinário, esta é uma ocorrência rara.O diagnóstico correto é frequentmente difícil.A ultrassonografia tem se tornado o principal recurso radiológico, sendo a urografia excretora limitada apenas necessária em casos complicados.Urolitíase durante a gravidez ocorre mais frequentmente próximo ao termo, em multíparas e sem diferença na lateralidade.O tratamento conservador com repouso no leito, hidratação e analgesia pode resultar em passagem espontânea da maioria dos cálculos.Cistoscopia e/ou cirurgia podem ser feitas com segurança, se absolutamente necessárias.Calculose pré-existente pode aumentar a incidência de infecção do trato urinário materno em até 20% no curso da gravidez.A complicação obstétrica mais comum produzida por cálculo renal durante a gestação é o trabalho de parto induzido pela cólica renal.A maioria das drogas normalmente usadas para tratar calculose renal são contraindicadas na gravidez.

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