HISTÓRIA DA ENURESE
Prof. Jean-Pierre Guignard
Department de Pediatrie
Centre Hospitalier Universitaire Vaudois
Lausanne – Suisse
Tradução: Profa Sheila Fenelon
Doutora em Neurologia pela Universidade de Paris
Professora do Dep Cirurgia da Univ. Federal de Uberlândia, MG
Se acreditarmos no papiro Ebers, antigo de 3500 anos, a enurese já preocupava os antigos egípcios. Provavelmente tão antiga quanto o Homo Sapiens, a enurese está presente em todas as civilizações. Encontra-se em todos os continentes, atinge todas as classes sociais, as menos favorecidas mais que as outras; tem geralmente incidência familiar. Em todos os tempos, a enurese surpreendeu as imaginações dando lugar a interpretações variadas e originando tratamentos por vezes bárbaros. A diversidade desses tratamentos diz muito sobre a riqueza das hipóteses patogênicas propostas no decorrer dos séculos. De modo geral, essas hipóteses são concentradas em: a) o psiquismo da criança,
b) a qnalidade de seu sono,
c) eventuais alterações de sua diurese.
Isto é o mínimo que nos sugere a história…
1-A enurese ao alvorecer da civilização
O próprio Ebers, datando da XVIIa dinastia, constitui um dos primeiros documentos sobre a enurese. Descoberto em Luxor e colocado atualmente no museu de Leipzig, este papiro alinha 20 metros de folhas, 110 colunas e 2289 linhas, textos médicos do mais alto interesse. Numerosas afecções aí estão enumeradas, assim como seus tratamentos. Um medicamento proposto contra a enurese era na base de medula de cana que se administrava à criança e à sua ama de leite. Talvez esta prática de tratar a ama de leite refletia o caráter familiar da afecção, a ama de leite representando o ambiente familiar mais do que o laço sanguíneo. Trinta e cinco séculos mais tarde, a incidência familiar da enurese voltará a ser evocada, por Guyon principalmente (ef.p. 8). Certos medicamentos propostos no papiro tinham uma base mineral, mas seus constituintes não puderam ser identificados com segurança.
2-A época greco-romana
Ainda que Hipócrates (460-377 A.C.), em razão de suas numerosas referências ao sistema urinário, seja por vezes considerado como o pai da nefrologia clínica [1], é a Aristóteles (384-322 A.C.), o discípulo de Platão, que se deve a primeira reflexão sobre as causas da enurese noturna. É assim que ele se pergunta, em Problemas: “Por que razão os jovens molham mais cama que os velhos? Pois é verdadeiro que quando as crianças estão dormindo, a urina escapa sem que elas saibam, antes mesmo que acordem. Na verdade, os jovens urinam geralmente no sono mais profundo”. Ainda que não confirmado por estudos científicos, a opinião de Aristóteles é muitas vezes partilhada por numerosos pais de crianças enuréticas. Alguns séculos mais tarde, Plínio, o Velho (23-79 D.C.) faz alusão ao benefício que poderiam tirar os enuréticos de algumas das 900 plantas medicinais meticulosamente descritas na sua obra monumental Naturalis Histórica. Ninguém sabe se ele teve tempo de verificar esses resultados. Almirante da frota de Misena quando se produziu a erupção do Vesúvio, ele morreu ao socorrer os habitantes de sua cidade natal de Stabies.
3-A civilização bizantina
Cirurgião célebre do Império Bizantino,Paul de Egine (620-680 D.C.) consagrou algumas linhas à enurese na sua coleção de notas reunidas em sete livros. Pode-se ler aí, no assunto dos enuréticos, que o “o relachamento dos músculos do colo vesical provoca esta afecção e atinge mais frequentemente as crianças. Nosso tratamento consiste mais especialmente na administração de tônicos tais como vinho quente e óleo e a abstenção de bebidas refrigerantes”. Esta hipótese de uma fraqueza do colo da bexiga e o conselho de administrar os tônicos sobreviveram até o século XX.
Philarete Philoteus (Theófilo) viveu provavelmente no século VII D.C. Sua obra princeps De Urunis descreve a natureza da urina, sua origem e seus aspectos, mas não diz nada de preciso sobre a enurese. É o mesmo para Isaac Judaeus (880-940 D.C.), cuja obra, igualmente intitulada De Urinis, foi muito popular no mundo árabe antes de ser traduzida para o latim por Constantino, o Africano. A urina é aí descrita em todos os seus aspectos; a urina noturna sendo objeto de um capítulo particular. Mas é a composição da urina que está no centro das discussões, mais do que as emissões noturnas.
4 – A Idade Média
Este período, por muito tempo considerado como um período de trevas no qual reinava a ignorância e a crueldade, foi o tempo das súplicas e das orações. Na Transilvânia, Santa Catarina de Alexandria, virgem cristã martirizada no 4o século após a luta vitoriosa contra os filósofos pagãos, era reconhecida por sua ajuda aos enuréticos. O 25 de novembro, seu aniversário, era a ocasião de pedidos particulares. Na Alemanha, é São Vito (São Guido) que vinha em socorro aos enuréticos. Ele era igualmente o patrono dos doentes sofrendo de constipação e da dança de São Guido*. As grandes escolas de medicina, inspiradas em Hipócrates e em Galeno (131-201 D.C.), foram infelizmente virtualmente dizimadas durante a Idade Média, somente alguns monges mantinham vivos os conhecimentos adquiridos. O que os monges pensavam da enurese noturna não chegou até nós.
5- A Renascença
O início da Renascença no Ocidente é habitualmente ligado a dois acontecimentos quase concomitantes: a queda do Império Romano do Oriente em 1453 e a publicação da Bíblia de Gutemberg em Mayence em 1454. Numerosos livros médicos viram logo o dia. Desde o fim do século XV, tratados de medicina infantil apareceram. O primeiro em data (1472) foi a obra de Paulus Bagellardus, professor de medicina em Pádua, cidade então no apogeu de seu poder. Trata-se de uma compilação dos escritos dos antigos, junto com experiências pessoais. No capítulo 20 de sua obra, intitulada Libellus de Egritudinibus Infantum, aprende-se que “os pais ficam especialmente zangados quando seu filho ou sua filha molham constantemente o leito, isto não somente um ou dois dias, mas continuamente, toda noite e não somente até a idade de 5 ou 6 anos, mas por vezes até a puberdade…”. A hipótese patogênica aventada por Bagellardus era a de uma fraqueza do colo da bexiga.
Em 1544, Thomas Phaer, considerado o pai da pediatria inglesa, publicava a 1a edição de seu Boke of Children. Um parágrafo intitulado “Of pyssing in the bedde” recomenda muitos medicamentos para “levar a cabo da enurese, sem precisar o fundamentado: “Tomai a traquéia de um galo, secai-a e reduzi-a a pó e adminstrai-a duas a três vezes por dia. Idem para a mandíbula de uma cabra, administrada sob forma de pó líquido ou consumida com uma sopa”.
A terapia de órgãos sob forma de bexiga de animal pulverizada, de intestinos de ratos ou de miolos será retomada nos séculos seguintes.
6- Os tempos modernos
Desde o século XVII, os trabalhos especificamente pediátricos se tornam mais numerosos. O espírito anatômico influencia a prática médica inclusive no que se refere à enurese. As técnicas propostas para curar a enurese, que se denomina ainda incontinência noturna, são cuidadosamente detalhadas.
A terapia de órgãos, colocada em valor no curso dos séculos precedentes, será desenvolvida por Nicolaens Fontanus d’Amsterdam (1642), que num texto intitulado”A propósito da incontinência urinária”, dá as seguintes recomendações: “a bexiga dos animais, por exemplo a bexiga de um cabrito ou a de um cordeiro, reduzida a pó, é o melhor tratamento da incontinência. Do mesmo modo que se dá a um asmático ou a um doente que tosse o pó do pulmão da raposa: assim como o pó de um cérebro humano aos epilépticos… Do mesmo modo, a bexiga de um cordeiro ou de um cabrito ou de outros animais, uma vez reduzida em pó, revigora a bexiga, que, agora reforçada torna-se capaz de reter a urina. Mas de todas essas bexigas, a mais fortemente recomendada é a dos porquinhos, porque se o extrato da bexiga é útil emrazão de sua simpatia, de sua semelhança e de sua afinidade à bexiga humana, então a bexiga de porco será bem mais útil, uma vez que os porcos são semelhantes ao homem sob todos os aspectos.”
Para a administração prática doremédio, Nicolaens Fontanus recomenda que o pó seja dado com vinho adstringente, “uma maneira fácilmente aceita pelas crianças.”
Outros autores da mesma época sugerem também os benefícios da terapia de órgãos. Daniel Sennert, em sua obra Practica Medicinae (1632), declara que “a incontinência é uma perversão fria e úmida dos humores. Para conseguir isto, adstringentes devem ser espalhados sobre a região supra pubiana;e um pó vede ser administrado: Rx bexiga de um porco, de um varrão ou de um carneiro assado – 3 ss”.
Tratando do mesmo assunto em seu livro intitulado Partes Duae De Morbis Puerorum (1659), James Primorose é de opinião que um rato assado pode ser de grande valor. Mais, pensa ele, “porque é assado e que tem como consequência um poder vesicatório, pois provem de um rato. Pode-se tentar o cérebro de uma lebre, encerrado e dentro de uma bexiga de porco, assada depois”. No que diz respeito às fugas urinárias da criança, ele admite a influência do Diabo, mas tem algumas dúvidas quanto à influência das feiticeiras “se bem que as pessoas acreditam nisto profundamente.
O século XVIII verá aparecer novas técnicas. Thomas Dickson [2] é o primeiro a relatar, em 1762, a eficácia das ventosas aplicadas no sacro das crianças enuréticas: “Como a maioria dos nervos para a bexiga passam através do foramem do sacro, parece provável que isto possa ser útil.” Esta técnica materá uma grande popularidade até o fim do século XIX.
7- O século XIX
Desde o século XIX, os conhecimentos da fisiologia e da patologia infantis evoluem graças à observação clínica. A leitura dos trabalhos e dos artigos publicados nessa época, assim como os tratamentos propostos, nos mostram quais eram as teorias etiopatogênicas em voga. Estas teorias não evoluiram no curso do século nem no curso da primeira metade do século seguinte. Elas se reencontram idênticas, tanto na literatura anglo-saxônica quanto na francofônica. O Dictionnaire des Sciences Medicales, publicado em Paris e regularmente atualizado, trata longamente da enurese. Gnersent, nas edições de 1815 e de 1818 [3, 4], nos dá um vivo resumo do problema neste início de século. No curso dos anos seguintes, Lagnean [5], depois Deeeevergie [7] e Guyon [6] se inspiraram enormemente nos escritos de Gnersent em suas publicações e seus cursos aos estudantes.
Os diferentes aspectos da enurese, tais como discutidos nesses textos, se referem: a) às características da enurese noturna, b) às particularidades das crianças que sofrem desta doença, c) às consequências físicas e psíquicas da afecção e d) aos tratamentos propostos em funções de hipóteses patogênicas.
7.1. Características da enurese noturna da criança:
Gnersent, professor no Hospital das Crianças em Paris, teve ocasião de seguir um grande número de crianças enuréticas. Ele caracterizava assim o problema: “A incontinência essencial própria às crianças se compara, em alguns aspectos, à incontinência senil. Ela depende, num e noutro caso, de uma debilidade dos órgãos destinados a resistir à dejeção da urina e à defecação e muitas vezes também ao defeito da influência da vida animal sobre estas funções. Os meninos são mais sujeitos a isto que as meninas; passado o tempo da puberdade, encontramo-la mais frequentemente nos moços que nas moças, o que depende talvez de que os prazeres sendo em geral mais precoces entre os rapazes que entre as senhoritas, a excitação dos órgãos genitais se comunica aos órgãos destinados à dejecção da urina [7].
Devergie [7] confirma no essencial essas características e insiste na frequência elevada da incontinência, que lhe parece depender da situação geográfica das populações: “Há províncias onde ela é muito comum, a Bretanha e a Normandia por exemplo.”
Em 1883, J.C. Félix Guyon, professor na Faculdade de Medicina de Paris, cirurgião do Hospital Necker, trata da enurese nas suas Leçons cliniques pur les maladies des voies urinaires [6]. Ele insiste em uma característica da enurese que ele mais pressente ou objetiva: “Talvez convenha pensar num certo papel da hereditariedade; muitas vezes, com efeito, vemos todas as crianças de uma mesma família atingidas pela incontinência. Entretanto, devemos acrescentar que não se trata de hereditariedade direta, mas antes, como salienta Tronsseau, de alguma coisa análoga a essas alternâncias patológicas assinaladas tantas vezes no curso das neuroses. Uma neurose neste caso caracterizada pela irritabilidade excessiva e a tonicidade exageradas das fibras musculares da bexiga” [6].
7.2. Quais são as particularidades das crianças enuréticas?
Ao ler as descrições de Gnersent, imagina-se que são sobretudo as crianças das classes desfavorecidas que sofrem de incontinência urinária: “As crianças afetadas desta doença são em geral dotadas de um temperamento linfático; têm comumente o tecido celular carregado de gordura, cabelos loiros, tez colorida, iris dilatada. Encontram-se entre eles muitos escrofulosos, raquíticos, tinhosos; são em geral predispostos às doenças do sistema linfático, quando são além disso mal nutridos e mal vestidos.”
Na edição de 1837 do Dictionnaire de Médecine ou Repertoire Général des Sciences Médicales considerées sous les rapports théoriques et pratiques [5], Lagneau, um discípulo de Gnersent, faz alusão à classificação das crianças que têm o defeito de urinar na cama: “Pode-se classificar essas crianças em dorminhocos, que a sensação desta necessidade não pode acordar, em sonhadores, que acreditam urinar no vaso ou num poste, e em preguiçosos, que não querem se levantar aos primeiros sinais que sentem.”
O tratamento, em cada um desses casos será certamente diferente. Devergie nota, entre os maus hábitos conduzindo à incontinência, a masturbação e, mais tarde, o abuso dos prazeres do amor: “A masturbação em excesso, até produzir o relachamento da bexiga e de seu esfincter, é ainda um fenômeno mórbido grave; pois quando as alterações são grandes nestes órgãos, onde a vida é enfraquecida moderadamente e muitas vezes em uma idade em que a energia vital começava apenas a se desenvolver, e era qual ela é morta quase ao seu nascimento: reparar tais desordens é uma tarefa muitas vezes difícil” [7]. Mais longe, ele continua: ”É o abuso dos prazeres do amor que produz a incontinência, a impotência, a espermatorréia ou perdas seminais pela fraqueza de todos os órgãos” [7].
7.3. As consequências da enurese.
Para Gnersent, a incontinência essencial não oferece por ela mesma nenhuma consequência grave. Mas ela pode ter consequências físicas locais graves: “Eu observei muitas vezes”, diz ele, “que nas crianças afetadas de incontinência urinária, a erupção da varíola e do sarampo se manifestava emprimeiro lugar em torno das partes constantemente embebidas de urina; e que o escroto, o pênis ou os grandes lábios eram cobertos de pústulas e botões/bolhas, antes que se possa percebê-los em outras partes do corpo.”
A incontinência noturna pode também afetar gravemente o moral e o psiquismo dos indivíduos atingidos e mais ainda o das crianças apresentando uma enurese diurna e noturna: “Mas se esta enfermidade é suficiente para tornar tristes e morosos aqueles que inundam seus leitos, pode-se julgar a influência que deve ter sobre o moral a dupla infelicidade de molhar constantemente suas roupas e de espalhar um odor repugnante. Também os indivíduos atingidos por esta dupla enfermidade, trazem no seu rosto, a marca da tristeza, muitas vezes da vergonha, e não é raro de ver suas inteligências e suas faculdades morais sem energia (enfraquecidas).” [4].
7.4. As causas da enurese noturna e seus alcances terapêuticos
Pode-se sistematicamente classificar as teorias etiopatogênicas da enurese noturna em 4 grupos segundo a bexiga, a urina, o temperamento do indivíduo ou a profundidade do sono sejam responsáveis pelo mal. Esta classificação decorre sobretudo da observação dos tratamentos, aplicados muitas vezes de modo empírico.
7.4.1. A bexiga é responsável pela enurese…
No século XIX, a bexiga é, como no decorrer dos séculos precedentes, o principal suspeito. A bexiga é alternadamente acusada de ser muito fraca, muito sensível ou muito irritável. Suas fibras musculares são pouco tônicas, seu colo incompetente, sem volume é muito pequeno. Os tratamentos terão pois por objetivo acalmar essa bexiga ou estimulá-la, torná-la mais ou menos sensível. Duas escolas vão pois se afrontar: aqueles que pensam que é necessário estimular a bexiga e aqueles que querem acalmá-la.
7.4.2. A bexiga atônica
a)Estimulação por droga
Devergie, como Lagneau e Gnersent antes dele, pensa que é preciso estimular a bexiga atômica dos incontinentes para melhorar sua função: “O ponto importante é superexcitar suficientemente a bexiga, até determinar a dor quando da emissão da urina; de inflamar, se necessário, este órgão para mudar seus modos de vitalidade pervertida ou de seu esfincter e de retorná-los ao seu estado normal.” [7].
Devergie torna-se um ardente defensor da injeção intravesical: injeções cantáridas, injeções balsâmicas, simples ou compostas, injeções venosas adstringentes. Um método que ele descreve em detalhe em sua obra Incontinence d’urine – son traitement rationnel par la méthode des injections [7]: “Uma simples onda de prata, de estanho, de borracha, de espessura média é introduzida na bexiga para esvaziá-la e aí introduzir em seguida a injeção. Nos casos comuns, injeto na primeira vez 48 gramas (uma polegada e meia ou 3 colheres) de água de cevada, na qual acrescento 5 gotas de álcool de cantáridas …. Desta maneira, obtenho cura radical da incontinência urinária em crianças de 13 a 14 anos, algumas vezes em 10 ou 12 sessões e cuja enfermidade tinha somente o sono profundo como causa.”
Uma revisão da literatura do século XIX nos revela que em outros produtos foram preconizados para estimular a bexiga, demonstrando “quanto esta doença é difícil de desenraizar e de curar” [7]. A lista dos meios empregados “prova até com evidência a solicitude dos médicos para desembaraçar a espécie humana desta cruel enfermidade” [7]. Mencionemos, entre outros, as cantáridas em pó, as cantáridas unidas ao rhus toxidendron, a injeção de água de cal, injeções frias, injeções de água vegeto-mineral, injeções de copaíba, citrato de potássio, o líquor patassú e o bicarbonato de potássio.
Se a aplicação intravesical de excitantes parecia remediar muitas vezes a preguiça vesical, certos autores propuseram administrar estes tônicos por via oral: “Entre os tônicos, o vinho, a genciana amarela, a quina e o óxido de ferro negro, me pareceram preferíveis a todos os outros”, dirá Gnersent [4]. Depois conclui: “De todos os remédios excitando a sensibilidade animal, aquele que será sem dúvida preferível é o mais enérgico para despertar a sensação da necessidade de urinar nas crianças seria verdadeiramente a noz vômica, seja em extrato seja em pó”.
Para excitar esta sensibilidade animal, outros, como Lagneau, preferiam as duchas frias: “As duchas frias, dirigidas sobre o púbis, as virilhas e o períneo, são também de grande eficácia contra esta espécie de incontinência. Os banhos de mar ou os banhos aromáticos serão igualmente muito vantajosos contra esta afecção” [5].
b)Estimulação pela eletricidade
A descoberta da corrente elétrica e da corrente de indução oferecem uma arma nova para combater a incontinência. Para estimular uma bexiga atômica, nada como, pensavam os terapêutas da incontinência, a terapia galvânica: “Eu empreguei nas crianças escrofulosas afetadas de incontinência urinária, a eletricidade galvânica, estabelecendo uma comunicação entre o escroto e o pubis, por meio de fios metálicos movidos a pilha. Este meio suficientemente doloroso e ao qual as crianças se prestavam dificilmente, quando empregado muitos dias em seguida, a quantidade de urina diminui de maneira considerável, como durante o uso do vinho de absinto e de outros tônicos, mas ele não escitou a sensibilidade da bexiga. Sem dúvida, a aplicação direta da comoção elétrica na própria bexiga, com a ajuda de uma sonda de metal introduzida neste órgão, teria sido muito mais eficaz; mas nos foi impossível de determinar as crianças a se submeterem a esta operação … [7].
Desde o fim do século XIX, as estimulações galvânicas ou farádicas foram generosamente distribuídas sobre a região genital dos pobres enuréticos. Os relatos a respeito destas técnicas afluíram do mundo inteiro: alguns colocavam seus eletrodos sobre o pubis ou o sacro, outros sobre o períneo ou ainda o ânus ou a uretra: “O método mais simples consiste em introduzir uma vela metálica na bexiga e em fazer passar uma corrente forádica até o limite de tolerância do paciente”, dirá Hernamann – Johnson no início do século XX [8].
7.4.3. A bexiga irritável.
Outra escola à qual pertence Trousseau [9], pensava que a incontinência urinária era devida a uma irritabilidade excessiva da bexiga. Trouseau, nos diz Guyon, “foi levado a esta opinião pela própria natureza do tratamento que ele prescrevia e que consistia, quase unicamente, no emprego da beladona tomada em doses progressivas. A eficácia da beladona parecendo evidente contra a incontinência, era lógico concluir a uma superatividade do músculo vesical, em virtude do velho adágio: Naturam morborum ostendunt curationes.” [6]. A beladona permanecerá por longo tempo muito popular e seus derivados ainda hoje o são quando da enurese diúrna.
Pouco diagnóstico aparentemente, Trousseau não excluía a atomia do colo vesical como causa da incontinência, mas ele reservava esta explicação para aqueles casos inteiramente particulares, incontinências diúrnas e noturnas, para as quais “ele prescrevia o xarope de estricnina, dosado de maneira a tomar, nos primeiros dias, um miligrama do princípio ativo; aumentando-se a dose segundo as necessidades” [6].
7.4.4. Nem atômica, nem irritável, a bexiga era mesmo assim responsável…
Ao lado destas duas possibilidades, bexiga atômica ou bexiga superexcitada, restavam outras hipóteses vésico-uretrais para explicar a afecção: bexiga muito pequena, colo incompetente, trígono defeituoso, meato uretral muito pouco sensível. Os tratamentos evoluiram consequentemente. É assim que H. Marion Sims, suspeitando de uma diminuição da capacidade vesical, recomendava “distender a bexiga com água, progressivamente, até que ela possa conter uma pinta” (pinta = medida de capacidade para líquidos. N.T.). Para aliviar as meninas com incontinência, Slade [10] propõe “introduzir anéis na vagina, atrás do hímem, e os insuflar de ar”. Isto afim de comprimir o colo da uretra insensível, ele podia ser “cauterizado pelo nitrato de prata para torná-lo mais sensível à passagem da urina” [11].
Para prevenir a queda do trígono vesical, que devia certamente favorecer a incontinência, alguns proibiam a posição deitada. Diversos instrumentos foram propostos para impedir a criança de dormir de costas [12]. Alguns, como Yeo [13], recomendavam manter durante o sono um ângulo de 45o entre o corpo e a bacia para impedir a urina de entrar na uretra posterior.
7.4.5. Uma poliúria relativa é responsável pela incontinência.
Gnersent foi sem dúvida o primeiro a suspeitar que um estado de poliúria relativa era, em certas crianças, responsável pela enurese. Escutemô-lo: “A desproporção das quantidades de urina excretada durante o dia e durante a noite é mesmo algumas vezes considerável: eu vi crianças de 6 a 8 anos, que restituíram apenas 8 a 16 onças de urina durante o dia, fornecer 30 ou 40 durante a noite” [7].
A hipótese da poliúria noturna da criança incontinente será retomada por Devergie, que afirma que “a quantidade de urina é, em muitas crianças afetadas de incontinência, mais considerável à noite que de dia; a desproporção é algumas vezes tão grande, que a diferença é dupla ou tripla”. Notando que esta urina é pouco salina, Devergie conclui: “que ela estimula apenas fracamente a necessidade de urinar”. [7]
A origem “poliúrica” da incontinência não foi retida pelos sucessores de Gnersent e Devergie. Será necessário esperar uma centena de anos para que a hipótese seja retomada por Poulton e Hinden [14] que sugeriram a presença de uma poliúria noturna em certos pacientes enuréticos. Esta observação não suscitará interesse até que Puri [15] demonstre, em 1980, que os pacientes enuréticos, contrariamente aos indivíduos normais, excretavam menos hormônio antidiurético à noite que de dia. É verdadeiramente deste trabalho que nasceu a hipótese dócrina (ou endodocriniana) da enurese.
7.5. Tratamentos não específicos
7.5.1. É preciso impressionar a criança incontinente…
Para a maior parte (12) dos autores do século XIX, as crianças enuréticas são muitas vezes linfáticas, escrofulosas ou raquíticas. É necessário pois, à evidência, reforçá-las antes de empreender qualquer outro tratamento. “É essencial”, nos diz Gnersent, “submeter as crianças ao regime que convém aqueles que são fracos; assim, serão alimentados unicamente com carnes assadas ou cozidas; beberão vinho e evitar-se-a sobretudo de lher dar caldos, sopas ou outros alimentos líquidos, quentes, particularmente na última refeição da noite” [4].
Uma vez sua constituição reforçada por estas medidas dietéticas, pode-se experimentar agir sobre o psiquismo dessas crianças incontinentes para tentar liberá-los de sua desvantagem: “quando a doença é leve, ela cede muitas vezes a uma impressão viva e forte sobre a imaginação. É assim que venos o temor dos castigos, o pavor e a impressão dos objetos mais asquerosos produzir algumas vezes efeito salutar. Então o temor agita a criança durante seu sono e o tem, por assim dizer, perto do despertar” [4].
Pode-se também “para curá-los deste degradante hábito, agir sobre o moral impressionável das crianças; basta impor-lhes privações e fazer-lhes reprimendas vivas em presença de pessoas estranhas, enfim atingir seu amor-próprio” [4].
7.5.2. Os castigos deveriam ser reservados aos simuladores…
A maior parte dos autores do século XIX concordam em reservar os açoitamentos aos simuladores, que se encontrem as vezes entre as crianças preguiçosas e mais vezes nos jovens militares, que pensam assim poderem ser retirados do serviço. Desmascarar esses simuladores não parecia muito difícil a Devergie: “A maneira mais simples para jamais ser enganado por esses indivíduos consiste em surpreendê-los à noite, durante seu primeiro sono e lhes passar uma sonda na bexiga. Se se encontra urina estagnada é que a incontinência é fingida (falsa); no caso em que, ao contrário, ela não sai, após várias tentativas, pode-se acreditar na realidade da doença” [7].
Mas fora dos simuladores seria injustiça infligir o menor castigo às crianças incontinentes, que não podem ser responsáveis por um acidente que lhes atinge sem que eles tenham consciência disto. Estes castigos não seriam somente injustos, mas eles fariam às crianças maltratadas correr um risco injustificável: “Não se saberia na realidade recomendar circunspecção em demasia no emprego, preconisado por diferentes autores, de medidas próprias a atingir intensamente a imaginação da criança, ocasionando-lhe um grande pavor, como o que ela experimenta quando se lhe faz esmagar um rato vivo na sua mão, quando ela escuta inopinadamente uma violenta detonação ou quando se lhe força a assistir aos últimos instantes de um moribundo. Poderia resultar disto, em numerosos casos, epilepsias, coréias ou qualquer outra afecção convulsiva mais ou menos difícil de curar” [7].
Se os médicos pareciam conscientes da injustiça e dos riscos que havia en castigar as crianças incontinentes, “acontecia mesmo assim de bestas brutas, semi selvagens, semi ferozes, desprovidos totalmente de raciocínio, de julgamentos e de humanidade, torturar de modo mais indigno as pobres crianças, puní-las de um mal mantido somente pelo sono profundo.” [7]. Estes fatos não são raros, nos diz Devergie: “O Tribunal de Justiça do Departamento do Sena, em sua sessão de 19 de julho de 1839, acaba de dar um novo exemplo e de condenar a 6 meses de prisão o denominado Morizetti, limpador de chaminés, por ter torturado o jovem Dellermano, de 14 anos de idade, portador de uma incontinência urinária, lhe ter queimado com palha as partes genitais, depois tê-las feito lavar com vinagre e tê-lo condenado por várias vezes a ser açoitado com cordas por seus amigos!!! Semelhantes barbárias deveriam ainda existir em nosso século?” [7].
7.5.3. Tratamento pelo condicionamento psicológico.
O tratamento pelo condicionamento, muito em moda atualmente, foi descrito de modo magistral pelo casal Mowrer em 1938 [16]. Mas é provavelmente a Nye [17] que se deve atribuir a idéia original do pipi-stop: “Fixar um dos polos de uma bateria elétrica a uma esponja úmida ou a uma placa metálica colocada entre os ombros do paciente e o outro polo a uma esponja seca colocada sobre o meato urinário. Enquanto isto é feito, é feito de forma que o paciente não seja incomodado, colocai-o na cama. Quando a esponja está seca, nenhuma eletricidade passa e o paciente dorme. Pelo contrário, quanto este começa a urinar, a esponja é molhada e torna-se condutora. O circuito é então completado no corpo do paciente. O som de uma campainha acordará o paciente. A repetição de tal experiência em um número suficiente de vezes permite curar o paciente”.
A primeira descrição do pipi-stop na sua forma atual data de 1904, quando um médico alemão imaginou um leito equipado por um coldrão indicador para assinalar às enfermeiras que a criança acabava de molhar a cama: “Meine Herren! Ich zeige ihnen eine von mir schon zwei Jahren konstruierte und damals na meiner Klink in Gebrauch gesetzte Vorrichtung, die urspunglich nur den Zweck haben sollte verhindern zu helfen, dass Kinder durch längere Zeit nass legen” [18].
Pfaundler observou que após um mês, este método tinha às vezes consequências terapêuticas nas crianças enuréticas. A idéia foi retomada cerca de trinta anos mais tarde. Se o despertar da criança por uma campainha é um método ainda utilizado em nossos dias, outras técnicas de condicionamento foram igualmente propostas. Assim Smith [19] imaginou o recurso da liberação de um pequeno jato de água fria gerado por tablettes se dissolvendo ao contato da urina.
7.6. Tratamentos paliatinos.
Para um certo número de práticos do século XIX, que permaneciam provavelmente céticos face aos resultados obtidos pelos tratamentos medicamentosos ou elétricos da incontinência, o recurso a meios paliativos era uma necessidade. Daí a idéia de construir aparelhos destinados a se opor à saída da urina seja pela compressão mecânica da uretra. Wilks [20] recomendava, para conter a urina: “um tubo de ferro, mas para o uso recoberto de veludo. Ele possui uma junta/juntura em uma de suas extremidades e é seguro por anéis. Ele deve ser adaptado ao tamanho do pênis e poder ser retirado quando o paciente desejar urinar”.
Um outro meio imaginado foi a compressão da uretra. Segundo Devergie [7], os primeiros compressores da uretra foram, parece, imaginados por um certo Niick. Seu instrumento consistia em: “duas placas de aço. Móveis, guarnecidas de pele, mantidas juntas em uma extremidade por uma dobradiça, e da outra, aproximadas ou afastadas à vontade, por um parafuso de cremalheira que as mantem. O pênis era colocado entre as duas placas e comprimido o suficiente para interceptar o curso da urina”[7].
Este compressor foi, segundo Devergie, melhorado por Labat: “M. Labat, ex-médico do vice-rei do Egito e professor das doenças das vias urinárias, acaba de trazer modificações felizes a este útil instrumento: O compressor de Labat tem uma vantagem real, a de comprimir o pênis senão de baixo pra cima, deixando a circulação livre nos corpos cavernosos e podendo ser afrouxado no mesmo instante, no caso em que uma ereção superveniente tornaria sua compressão incômoda ou dolorosa”. [7].
Três acontecimentos principais marcaram a história da enurese no decorrer do século XX: o tratamento pelo condicionamento, utilizando no início o colchão indicador, depois um protetor de cueca cujo princípio é descrito mais adiante. Depois será o uso da imipramina,um antidepressivo tricíclico, que é o primeiro medicamento a se distinguir significativamente de um placebo. Seu modo de ação é infelizmente ainda desconhecido. Enfim a introdução da desmopressina, cuja utilização racional repousa sobre a teoria endócrina da enurese; teoria segundo a qual a enurese seria devida, num certo número de casos, a uma poliúria noturna relativa, ela mesma secundária a uma perturbação do ritmo nictemeral da secreção do hormônio antidiurético.
Certos etnógrafos se interessaram igualmente à enurese e alguns textos que se referem a isto nos provam que a enurese constitui igualmente um problema nas sociedades ditas “primitivas”, confirmando assim a impressão que a enurese não é um “mal” ligado à civilização moderna.
As sociedades primitivas parecem mais pacientes face à enurese. O controle da micção aí é com efeito esperado muito mais tarde que nas sociedades desenvolvidas. Kidds [21] conta que os pais das crianças do Kafir não esperam que elas sejam asseadas antes do aparecimento dos segundos dentes. Os contatos muitas vezes mais estreitos entre a mãe e seu filho, este último dormindo nu contra sua mãe, favoreceu provavelmente a aquisição do asseio. Nos Arapesh, o contato entre a mãe e a criança é também estreito, mas “quando a criança urina ou defeca, a mãe o joga rapidamente do lado, para evitar ser manchada / sugada / molhada” [22]. Repetida, a manobra deve bem acabar por despertar a atenção da criança sobre suas micções e suas defecações.
O tratamento da enurese na maior parte das sociedades primitivas estudadas, repousa sobre o condicionamento pelo vexame ou pelo medo. No país Ashanti, no Gana [23], as crianças não são introduzidas ao asseio antes do momento do desmame, que intervem habitualmente por volta de 3 a 4 anos. É então o papel do pai de empreender esta educação. A criança enurética não é castigada, mas, quando ela molha sua cama, o pai chama meninas e meninos da mesma idade numa dansa chamada “nonsua bono”. A criança é amarrada sobre seu leito e, enquanto as outras jogam água sobre ele, ele deve cantar “eu molho minha cama à noite, eu molho minhas roupas à noite”.
Essas práticas vexatórias se reencontram no Dahomey [24]. Os enuréticos refratários são conduzidos na rua onde todas as crianças da cidade os acompanham dando-lhes palmadas aos gritos de “Adidi za za za za – urina por toda parte”.
No Lesoto, pra impressionar a criança enurética, fá-lo urinar em cima de um profundo precipício. Enquanto que nos Bantus, exarifica-se a pele dos jovens enuréticos a fim de eliminar o sangue mau [25].
Nos índios Navajo [26], quando uma criança molha sua cama após 4 ou 5 anos de idade, um rito mágico é instituído. Mantém-se à criança enurética acima de um ninho de pássaro ardente “o que deve lhe ajudar, pois os pássaros não urinam nos seus ninhos”. Em caso de fracasso, a via do vexame e das ameaças é então escolhida: “Se você não consegue, seu irmão ou outra pessoa vai morrer, pois são os mortos que perdem água todo o tempo”.
Na parte ocidental da Nigéria, um método de condicionamento próximo daquele de Nye, Pfaundler e do casal Mowrer é utilizado. Num primeiro tempo, a criança enurética é imergida várias vezes numa lagoa. Se isto não é suficiente, amarra-se então um sapo no pênis da criança. Quando esta molha sua cama, o sapo começa a croaxar, acordando a criança [27]. Esta técnica não lembra estranhamente o nosso colchão indicador ocidental?
Como vemos, a enurese parece estar presente em toda parte. Os alcances terapêuticos das sociedades primitivas podem fazer sorrir ou chocar. Mas nossa sociedade “civilizada” tem sido ela muito mais racional? A leitura da imprensa cotidiana pode nos fazer duvidar disto:
Correio da Tribuna de Genebra, 6a feira 23.10.92
“Mudar a cama ao invés de molhá-la!
… Muitas vezes, tendo tudo tentado, as mães de crianças enuréticas aprendiam a existência de meu gabinete de geobiologia. E lá, frequentemente (mas não sempre), eu descobria a presença do que se chama (daquilo que chamamos) um nó / laço tetúrico na cama da criança, no lugar exato onde se encontra a bexiga. Nesses casos, eu faço mudar/ mudo a cama de lugar e desde a noite seguinte, nada de enurese, definitivamente. Não pensais vós que antes de administrar drogas e medicamentos com receita a uma criança, não seria mais simples verificar simplesmente se sua cama não está colocada num lugar errado?”
X.P. Commugny.
* Dança de São Guido = atual Coréia de Sydenhann (N.T.)