Quando a ciência opera em favor dos ultraprocessados
O aumento no número de artigos que contestam a classificação de alimentos em relação aos ultraprocessados revela uma batalha complexa entre ciência e indústria. A Classificação NOVA, desenvolvida pelo Nupens da USP, apresenta uma nova perspectiva ao investigar a transformação dos alimentos, em vez de se limitar apenas ao que eles contêm. Essa abordagem foi implementada para diferenciar alimentos naturais de formulações industriais, permitindo uma análise mais precisa dos impactos na saúde.
Desde sua criação em 2009, a Classificação NOVA foi uma ferramenta crucial que expôs como os ultraprocessados dominam as prateleiras e como isso está relacionado ao aumento dos problemas de saúde pública. Cada vez mais, pesquisadores e organizações internacionais reconhecem a importância dessa classificação, que desafia as multinacionais do setor alimentício, tradicionalmente relutantes em aceitar essa distinção.
Reações da Indústria
As reações iniciais da indústria alimentícia eram diretas e agressivas, atacando a credibilidade da Classificação NOVA e tentando desacreditá-la junto aos governos e à sociedade. No entanto, à medida que as evidências se tornavam mais evidentes, a estratégia mudou. A indústria começou a utilizar a ciência como uma arma, promovendo estudos que levantavam dúvidas sobre a eficácia e a aplicabilidade da classificação.
Uma pesquisa realizada no banco de dados PubMed revelou que, até setembro de 2025, 114 textos científicos mencionavam a Classificação NOVA, sendo que 17 deles levantavam questionamentos sobre sua abrangência e validade. Esses estudos frequentemente analisavam grupos restritos de produtos, como laticínios fermentados, e estabeleciam correlações com indicadores de saúde específicos, como doenças cardiovasculares. Quando não encontravam relações claras, utilizavam isso para atacar a classificação em sua totalidade.
A Importância da Classificação
A NOVA não busca rotular alimentos como “bons” ou “ruins”, mas sim organizar o consumo alimentar de acordo com o grau de processamento. Essa distinção é essencial, pois ajuda a entender como os ultraprocessados afetam os padrões alimentares tradicionais e a saúde pública. Os críticos que tentam relativizar a classificação frequentemente ignoram essa abordagem holística, focando apenas em análises isoladas.
Um ponto importante levantado por especialistas é que, em países onde os ultraprocessados já dominam a dieta, como os Estados Unidos e o Reino Unido, a regulação deveria começar pelos produtos mais nocivos. No entanto, essa lógica pode ser manipulada, como observa Renata Levy, da USP, que aponta que comparações inadequadas podem levar a conclusões distorcidas sobre a saúde dos alimentos.
Conflitos de Interesse na Pesquisa
O conflito de interesses na ciência é uma preocupação crescente. Estudos financiados por empresas do setor alimentício podem comprometer a credibilidade das pesquisas. Um levantamento indicou que 33 dos 38 autores que criticaram a Classificação NOVA tinham vínculos diretos com a indústria de ultraprocessados, o que levanta questões sobre a objetividade de suas conclusões.
As formas de conflito de interesse incluem:
- Financeiro direto: Quando fabricantes financiam estudos que minimizam riscos associados aos seus produtos.
- Institucional: Pressões de instituições que defendem políticas alimentares que podem influenciar os resultados.
- Intelectual: Apegos a teorias que podem enviesar a interpretação de resultados.
- Pessoal: Relações pessoais que podem afetar a avaliação e interpretação de estudos.
Impactos e Relevância da Classificação NOVA
Um estudo recente sobre a Classificação NOVA revela que muitos dos ataques a ela são oriundos de documentos associados à própria indústria alimentícia. A resistência à classificação não se resume apenas a questões científicas, mas também envolve uma componente cultural. Produtos ultraprocessados frequentemente são vistos como sinônimos de progresso e conveniência, representando um estilo de vida moderno que muitos defendem.
Além disso, iniciativas como o ObservaCoI buscam trazer à tona a influência da indústria na pesquisa científica. Essa organização se dedica a formar pesquisadores e gestores para reconhecer e enfrentar essas práticas, defendendo políticas públicas que protejam a saúde coletiva.
Concluindo a Discussão
Embora a Classificação NOVA tenha sido reconhecida como uma ferramenta importante, ainda existem limitações e desafios. A crítica à classificação por organizações e pesquisadores ligados à indústria pode obscurecer a evidência científica acumulada que associa o consumo de ultraprocessados a diversas doenças. É essencial que a pesquisa científica permaneça livre de influências externas, a fim de preservar sua autonomia e credibilidade.
A situação atual exige um olhar atento sobre como a ciência é conduzida e como os interesses corporativos podem moldar percepções e políticas alimentares. O futuro da saúde pública pode depender da capacidade de discernir entre o que é verdadeiramente benéfico e o que é promovido por interesses particulares.
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